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Álvaro Machado Dias

O futuro da educação I: o problema do engajamento

Álvaro Machado Dias

27/08/2019 04h00

Crédito: Chris Johanson

O processo educacional precisa se atualizar. Isto passa pela incorporação de novas estratégias tecnológicas e de soluções melhores para o problema motivacional que afeta o sucesso escolar de parte significativa dos alunos. Porém, isso não necessariamente passa pelas soluções mais populares entre os ideólogos do Vale do Silício, cujo destaque cresce a cada dia.

Diz-se que, se recebêssemos a visita de alguns habitantes do início do século XVIII, seríamos interpelados sobre a identidade e o sentido de quase tudo. Isso incluiria o esquisito hábito de andarmos em bando, cada qual grudado a seu próprio tijolinho de vidro, como o último dos mestres de obras, à beira do seu leito de morte.

Cansados de tanto explicar, iríamos mandá-los à escola, na esperança de que alguém profissionalmente habilitado resolvesse a questão. Eis então que uma epifania ocorreria e, enfileirados à espera do mestre, nossos visitantes encontrariam conforto, sob a suposição de que nem tudo mudou.

O formato escolar tradicional está sob escrutínio global, midiaticamente liderado por iniciativas identificadas com o espírito do Vale do Silício, sejam elas de lá ou não. De maneira geral, concordo com a ideia de que o processo educacional precisa se atualizar, o que, na prática, significa enfatizar a produção intelectual do aluno e não a transmissão do conhecimento propriamente dita.

Não é tão simples para mim dizer isso. Professor concursado de uma universidade pública federal desde 2010 e livre-docente desde 2015, não posso negar que estimo o respeito absoluto que tenho dos alunos. Uma espécie de acatamento que às vezes beira a deferência e me deixa um pouco constrangido, é verdade, mas que garante atenção plena nas aulas, comparecimento massivo e, ao término de cada curso, a certeza de que consegui atingir o objetivo proposto. Este é o ambiente da universidade e, ainda mais, da pós-graduação.

A situação não é análoga à das escolas. Lá, a premissa de que o saber professoral deve sempre estar no centro do aprendizado converte-se em um problema ainda maior.

A razão para esta diferença pode ser esclarecida com níveis diversos de profundidade. Opto por um intermediário, mais do que suficiente para os nossos propósitos. A despeito de inúmeras exceções, existe uma associação positiva entre QI e satisfação com a vida: o QI é parcialmente dependente de genes, parcialmente dependente de condições alimentares e de saúde e, por fim, parcialmente dependente do contexto informacional em que as competências medidas pelo teste se desenvolvem. Para se ter uma ideia do quanto estes fatores alheios à genética são importantes, basta atentar para o fato de que hoje classificamos as pessoas situadas na faixa do QI médio da virada para o século XX (72 pontos) como portadoras de atraso mental. De outra maneira, a educação ajuda as pessoas a atingirem o melhor de si do ponto de vista produtivo. Isso se reverte em maiores oportunidades no mundo do trabalho, que tendem a ser experimentadas positivamente. Vale ter em mente que essa ideia de maximização do potencial produtivo individual varia entre os contextos, o que cria espaço para uma segunda discussão.

A escola possui papel fundamental na determinação do contexto informacional. Isso ocorre porque o ambiente escolar está sincronizado com o neuro-desenvolvimento, que depende da atividade de genes ativados em função do esforço intelectual de alta duração e intensidade. Os indivíduos, porém, tendem a não se dispor a fazer esse esforço em circunstâncias desfavoráveis, como, por exemplo, quando sentem que a experiência pedagógica é tediosa e não foi pensada para tornar sua vida melhor.

As diferentes manifestações da inteligência são genéticas quando vistas de um ponto de vista ambiental e ambientais quando vistas de um ponto de vista genético, na medida em que os genes são ligados e desligados sob demandas externas. Tudo isso é estabelecido em bases empíricas incontroversas pelas neurociências contemporâneas, que pacificam a antiga discussão sobre natureza e cultura.

Outro ponto pacífico é que estes processos de reconexão cerebral por meio da atividade genética persistem ao longo da vida adulta, incluindo a velhice, cuja categorização como fase distinta anda sob suspeição. Porém, a exuberância dos efeitos decai muito frente à infância e adolescência, as quais devem ser vistas como verdadeiras janelas de oportunidade para a fixação do QI e outras formas de inteligência e, assim, para a missão de tornar as pessoas mais satisfeitas com a vida.

O grande porém disso tudo é que entre o potencial intelectual e a sua realização existe um anteparo, que comumente chamamos de motivação. Fosse esse de outra natureza, teríamos legiões de jovens jogando Go, ao invés de FIFA, assim como buscando maneiras exclusivas de maximizar seu QI, ao invés da adequação a grupos.

Na realidade, seria um mundo pior, tal como era há cem anos, quando as relações amorosas entre racionalidade e barbárie eram lapidadas sob a bandeira da primeira, levando-nos, alguns anos à frente, a atingir o fundo do poço enquanto espécie.

É a partir do ponto de vista de que os jovens são socialmente sensíveis e de que não conseguimos produzir nada mais do que frustração e outras formas de sofrimento psíquico ao impormos na marra uma agenda de métodos e conhecimentos que não lhes motivem, que concordo com a noção de que é importante dar mais foco pedagógico ao aluno. Uma situação emblemática, que vale tanto para os alunos do ensino médio quanto para os dos cursos universitários menos elaborados, é a leitura prolongada de textos em sala de aula. Difícil encontrar o aluno que não perceba que poderia perfeitamente ter essa aula deitado. É claro que o mesmo não se aplica ao fundamental, período em que o aluno ainda precisa de supervisão para ler, bem como ao debate de texto, que é coisa bem distinta.

Preservados os limites da ressalva, nota-se que um sem fim de atividades desenvolvidas na sala de aula tradicional pouco se beneficia do ambiente social instaurado, o que afeta o engajamento. Acredito que a educação sairia fortalecida se a duração do período escolar fosse ampliada em 60 ou 90 minutos, definidos por livre escolha do aluno, do instante em que sai da escola ao instante em que retorna. A ideia é que tais minutos fossem usados para que assistisse a apresentações resumidas dos conceitos tratados nas aulas subsequentes e fizesse alguns exercícios automatizados de retenção, numa plataforma dedicada, de modo que a experiência em sala de aula estivesse mais centrada no desenvolvimento de raciocínios e em suas aplicações.

Trata-se de princípio oposto àquele que a lição de casa agrega ao ensino tradicional, resultando em um modelo que preconiza que o aluno seja academicamente mais ativo em casa do que na escola – ou, para ser mais preciso, que priorize processos de fora para dentro (bottom-up) na escola, e processos de dentro para fora (top-down) em casa. Em contraste, é pela execução destes últimos que o cérebro se desenvolve mais e não é por acaso que apoio e coparticipação nas situações de solução de problema geram engajamento espontâneo, como se nota quando os jovens querem passar por uma fase difícil em de um jogo online e prontamente se conectam a quem lhes possa dar uma força, com a máxima atenção.

Como se pode notar, talvez não exista um problema intrínseco de engajamento com os jovens de hoje ou de sempre; talvez a questão seja que este ocorre mais fortemente na solução de problemas do que na fase de introdução a eles.

Assim é que aquilo que deveria ser tratado como o pináculo do aprendizado é tratado como lição de casa e, geração após geração, submetemo-nos a um teste de paciência, sem paralelos na vida. Falo isso sem um pingo de mágoa ou rancor; fui excelente aluno em todos os anos, nunca tendo tido qualquer mal-estar com professor ou mesmo alguma recuperação. Apenas noto que continuo com a mesma opinião que tinha quando estava escola: ter uma experiência intelectual análoga àquela que eu poderia ter deitado na minha cama, exceto pelo fato de estar enfileirado e de ter acordado às seis e quarenta da manhã, é um despropósito. Por sorte, várias das experiências de aprendizado que tive não seguiram esse roteiro e eu acabei me apaixonando pela vida acadêmica, que segue sendo uma fonte de prazer e estímulo para aprender mais.

Tecnologias com propósitos motivacionais

A dobradinha "passivo em sala, ativo em casa" não é fruto de preguiça ou má fé. Ela reflete um problema metodológico complexo: que tipo de dinâmica produtiva, top-down, funciona em sala de aula? Peter Diamandis, presidente da Singularity University, tem a sua receita. Um dos ingredientes centrais é o uso de tecnologias projetivas nas aulas de humanas. Consideremos um exemplo: um tópico de história poderia ser mais bem fixado se os alunos contassem com experiências em realidade virtual (VR), que os permitissem estabelecer contato imersivo com a experiência de viver no período estudado. Essa visão é emblemática de um movimento que vem tomando forma e que tende a despontar como contraponto à escola como túmulo do engajamento.

À primeira vista, parece ótimo, como aliás a ideia mais ampla de gameficação, que começou nas escolas e se espalhou pelas empresas, sob a premissa de que existe uma ponte natural entre elas. Abaixo da superfície, porém, um aspecto chama atenção. Conforme vimos, o crescimento do QI dos últimos 120 anos ou mais (efeito Flynn) é em grande parte fruto de mudanças no ambiente informacional a qual somos expostos desde a infância. Estas mudanças refletem um uso cada vez maior de categorias do entendimento e relacionamento, bem como o uso de abstrações crescentes em nossas construções intelectuais.

Um experimento mental ajuda a ilustrar isso. Hoje separamos muito claramente os relacionamentos que podemos estabelecer com pessoas e máquinas. Em 25 ou 30 anos, sistemas neuromórficos (baseados no cérebro humano) farão algumas funções interpessoais convincentemente bem, criando por vezes a impressão de que são gente como a gente. Bebês terão que aprender a lidar com as diferenças de acoplamento em relação a seus pares, animais de estimação e assistentes robóticos, entendendo que não é porque estes últimos exibem comportamento verbal e são capazes de brincar por horas a fio, que conseguem estabelecer relações afetivas e outras, que mesmo o cachorro é capaz, ainda que sem todo o resto. Durante incorporação desta clivagem relacional, que injetará complexidade relacional no mundo, deverão avançar mais uns pontinhos no teste de QI e nas avaliações de cognição social, enquanto seus pais e avós estarão discutindo o ocaso anunciado de sua geração, ameaçada pela dependência dos robôs, para a realização das tarefas mais comezinhas.

O progresso tecnológico é um dos principais responsáveis pela elevação continuada do grau de sofisticação das experiências de vida de parte significativa da população mundial, pela via do incremento nas sutilezas, categorias do entendimento e construções abstratas encadeadas. Justamente por isso, essa ideia de aplicação tecnológica na sala de aula tende a ser negativa para os alunos mais velhos.

O aluno que aprende história ou o que quer que seja pela visualização do conteúdo em realidade aumentada processa informações de maneira menos abstrata e nuançada do que quando precisa emular a situação, pela conversão do discurso verbal em imagético. É esperado que sua capacidade de retenção de detalhes visuais aumente, que aquele período se torne mais próximo de sua realidade do ponto de vista representacional e que a aula se torne um pouco menos enfadonha, o que é de grande importância – a despeito do fato de que o VR é o típico formato que deveria ser consumido em casa, nos momentos de preparação que mencionei, dado seu caráter profundamente individual. Porém, especialmente no caso dos alunos mais velhos, não é esperado que um currículo que coloque este tipo de experiência em primeiro plano maximize o QI, outras formas de inteligência e a formação intelectual em geral. Se fosse assim, teríamos grandes reflexões brotando do consumo das séries da BBC, o que não parece ser o caso, a despeito da qualidade inconteste dos vídeos.

O verdadeiro desafio, na minha opinião, é engajar o aluno nas esferas criativas de produção intelectual e técnica, as quais são intimamente dependentes de ambientação abstrata. Aliás, é por isso que não acredito que o e-learning consiga atingir o mesmo nível de qualidade do ensino presencial, que contribui para que o aluno não abandone raciocínios mais complexos no meio, uma vez que seja desenhado para tanto.

Outra ideia que julgo sofrer do mesmo tipo limitação – e que é igualmente típica do empreendedorismo do Vale do Silício – é a de que o segredo para uma educação melhor está na capacidade de despertar a paixão dos alunos, o que na linha do Peter significa "uma escola que permita aos alunos descobrir e explorar suas paixões".

Os jovens já chegam à escola, diariamente, imbuídos de suas paixões tácitas, as quais costumam envolver jogos online, redes sociais e certas formas de relacionamento presencial, especialmente aquelas que antecipam relacionamentos amorosos. Não há vazio ou falta geral de interesses; pelo contrário, o desafio é muito mais o de encontrar contrapontos a estas "paixões" convergentes que, tomadas como único pilar da vida, tendem a obliterar o crescimento pessoal, cobrando seu preço mais tarde.

Sob a ideologia do Vale do Silício, o problema se revela menor. Afinal, a paixão por games pode evoluir para a criação de uma startup de jogos aos 14 e o primeiro milhão de dólares aos 17. Mas, de um ponto de vista ampliado, eis mais um exemplo de má ideia escondida sob uma proposição de valor aparentemente inócua. O desfecho de curto prazo mais provável é o aumento da aversão por aquilo que o jovem não escolheu, enquanto no longo prazo chega-se ao reforço do individualismo e intolerância à frustração. Se a escola se aproximasse de um espaço recreativo, a competência suprema seria a de topar, lá no fundo, participar dos jogos propostos pelos outros.

Não há soluções simples para o problema do engajamento. Um primeiro passo é rechaçar falsas panaceias sem jogar fora as oportunidades reais que as novas tecnologias nos oferecem.

Avancemos sobre isso no próximo ensaio. Até lá.

Sobre o Autor

Álvaro Machado Dias é neurocientista cognitivo, professor livre-docente da Universidade Federal de São Paulo, diretor do Centro de Estudos Avançados em Tomadas de Decisão, editor associado da revista científica Frontiers in Neuroscience, membro da Behavioral & Brain Sciences (Cambridge) e do MIT Tech Review Global Panel. Seus interesses intelectuais envolvem tomada de decisões de um ponto de vista cerebral, efeitos das novas tecnologias na compreensão do mundo, inteligência artificial, blockchain e o futuro da medicina. Contato: alvaromd@wemind.com.br

Sobre o Blog

Este blog trata de transformações de mentalidades, processos decisórios e formas de relacionamento humano, ditadas pela tecnologia. A ideia é discorrer sobre tendências que ainda não se popularizaram, mas que dão mostras de estarem neste caminho, com a intenção de revelar o que têm de mais esquisito, notável ou simplesmente interessante, de maneira acessível e contextualizada.