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Álvaro Machado Dias

Repensando as decisões I: conflitos na alta gestão

Álvaro Machado Dias

22/10/2019 04h00

Crédito: Divulgação

Este é o primeiro ensaio da série "Repensando as decisões". Aqui, o objetivo é rever um dogma famoso das decisões tomadas no âmbito da alta gestão, que é o de que os problemas decisórios devem ser tomados como conflitos cognitivos. Conforme argumento, isso na prática só serve para tornar os conselheiros e executivos menos conscientes de seus determinantes subjetivos.

Emoções são manifestações sofisticadas de relacionamento com o mundo. Elas têm pegadinhas que teremos dificuldade para explicar aos alienígenas, mesmo que antes mandemos toda a nossa grade de novelas mexicanas, junto com o sinal de rádio.

Ao contrário da lógica, cuja suposta complexidade o computador digital come com farinha, as emoções não são para amadores. Isso torna ainda mais surpreendente o fato de terem uma dimensão pré-fixada, de caráter hedônico, a qual nos permite dizer, caso a caso, se o que predomina é prazer, desprazer ou uma combinação de ambos.

Esse componente pré-fixado seguiu-nos quando fincamos os pés no chão, em meio à savanização africana e permitiu que continuássemos no jogo até hoje, a despeito das musas primatas, que tantas vezes tentaram nos convencer a parar com a ambição e viver de frutas e saúvas, em alguma gruta privativa do caminho.

Prazer e o desprazer evoluíram para nos ajudar a escolher a melhor resposta possível para cada situação; ambos parecem deslocados no mundo da consciência culturalizada, que supostamente poderia nos bastar com juízos elevados sobre a virtude e seus desvios, mas não: é justamente pela experiência de prazer e desprazer que criamos as impressões primárias sobre o bem e o mal, das quais todas as outras se derivam.

A fórmula fixada pela seleção natural é simples: se algo dá prazer, reitere; se dá desprazer, rechace. Rechaçar, por sua vez, pode se dar de duas formas: através de um ataque à fonte do desprazer ou através da fuga. Nas espécies que não têm que lidar com a necessidade de justificar suas escolhas, como é o nosso caso, a escolha entre ataque e fuga é definida pelo produto do valor do que está em discussão pela chance de se levar a pior.

Conflitos interpessoais são formas intensas de relacionamento, que se caracterizam por contraporem rechaços em forma de ataque. Neles, intensas experiências de desprazer dão origem a impulsos de retaliação que se retroalimentam, levando a embates continuados, que nenhum animal em sã consciência bancaria.

Como escreveu o poeta inglês Hilaire Belloc em "O silêncio do mar", as pessoas têm instintos conflitivos, pelo menos as saudáveis. A isso poderíamos acrescentar que a fronteira da insanidade está demarcada pelo litoral de tais instintos.

A visão predominante sobre os conflitos na alta gestão é de que estes podem ser categorizados em dois tipos: cognitivos e emocionais. Aqueles são determinados pela tensão entre propostas e pontos de vista. Eles são o espírito socrático redivivo na ágora corporativa, gerando insight sobre insight, numa espiral de iluminação incremental, que em certo momento torna o próprio conflito obsoleto. Já os conflitos emocionais retomam o espírito da tragédia. Por eles, desejos, invejas e ambições chocam-se como Heitor e Aquiles na terra rebaixada e assim persistem até o mais forte arrastar os restos massacrados do inimigo pelas muralhas da empresa, para o deleite dos que assistem de dentro e de fora.

A fórmula para a prosperidade intelectual corporativa emerge cristalina deste raciocínio: criar espaço para os conflitos cognitivos, afastando os emocionais. "O conflito cognitivo é orientado a tarefas e emerge de diferenças de julgamento (…) ele aumenta o engajamento ao encorajar a expressão de pontos de vista diversos" (Amason e Schweiger, 1994, p. 245).

A obediência a este paradigma deve crescer linearmente com o nível do debate, tal que os conselhos emerjam como espaços socráticos, incorporando as melhores alternativas, ao longo de cada novo processo decisório.

Faz sentido para ti? Pois eu discordo completamente e acredito que esteja mais do que na hora da alta gestão provar uma abordagem menos esquemática e mais realista.

Uma opção decisória é uma representação mental de um futuro hipotético, que acreditamos que trará vantagens uma vez que se realize. A crença nessas vantagens é determinada pelo prazer ou conforto que a ideia nos causa, em consonância com a função biológica do hedonismo.

Tal como quando pensamos verbalmente escutamos nossa subvocalização de maneira muito mais familiar e menos estridente do que as vozes vindas de fora, quando temos uma ideia tendemos a experimentá-la de maneira mais evidente e confortável do que as alternativas.

Uma consequência disso é que não é difícil nos sentirmos um pouco mal quando nossas ideias são confrontadas e sobrepujadas; outra, mais grave, é a tendência das pessoas menos inteligentes a achar que estão sempre certas (uma conta que evidentemente não fecha) por força da inabilidade de incorporar aos seus modelos mentais o fato de que esta convicção deriva-se do prazer eliciado pela familiaridade orgânica com a própria ideia, aspecto com o qual as alternativas não contam.

Eis o desafio maior do embate de ideias na alta gestão: via de regra, colocamos em pauta propostas cujo valor cognitivo foi determinado usando processos afetivos, ao mesmo tempo em que temos que discuti-las como se este princípio não existisse.

Num outro plano, a noção de conflitos cognitivos erra feio ao subsumir que o debate corporativo arrola ideias blindadas aos interesses pessoais. Tais propostas de ares metafísicos existem, mas são avis rara, dado que as consequências das deliberações são transmitidas para os executivos e conselheiros que lhes encabeçam.

Por estas razões e outras, prefiro compreender estas decisões por um ponto de vista motivacional. De acordo com este, os conflitos decisórios não aceitam essa espécie de cartesianismo que separa o corpo (afetivo) e a mente (cognitivo) e, em contraste, adequam-se à noção de que o melhor resultado corporativo depende da capacidade e interesse dos interlocutores mais poderosos de inibirem o impulso para se impor toda vez que lhes parecer que suas ideias são superiores às dos demais.

Tal como o gestor que contrata gente diferente de si e da maior parte do time porque sabe que a diversidade traz qualidade, a premissa é que o melhor para a empresa é deixar que esse equilíbrio aconteça, abrindo espaço para que, ao longo do tempo, diferentes pessoas despontem como pivôs de ações propositivas, já que estas tenderão a se esforçar mais para fazer aquilo que preconizam, o que será bom para a empresa, a despeito das especificidades de cada ideia.

Essa é metade da visão que tenho. Do outro lado, tendo a pensar que, ao abrir mão do protagonismo para maximizar os resultados, o executivo ou conselheiro acaba tendo sua posição ameaçada por aqueles que tentam falar mais alto e que adotam a estratégia de alinhar, de maneira convenientemente pontual, seus interesses aos da corporação. É mais ou menos como no futebol, onde quem abre os espaços na marcação nunca é muito lembrado.

O balanço é incerto e não há solução ideal para essa contradição. Na prática, o que acaba acontecendo é que os executivos e conselheiros mais compromissados com os interesses profundos da corporação acabam sendo limados em algum momento.

Assim são as empresas. Assim é a vida.

Sobre o Autor

Álvaro Machado Dias é neurocientista cognitivo, professor livre-docente da Universidade Federal de São Paulo, diretor do Centro de Estudos Avançados em Tomadas de Decisão, editor associado da revista científica Frontiers in Neuroscience, membro da Behavioral & Brain Sciences (Cambridge) e do MIT Tech Review Global Panel. Seus interesses intelectuais envolvem tomada de decisões de um ponto de vista cerebral, efeitos das novas tecnologias na compreensão do mundo, inteligência artificial, blockchain e o futuro da medicina. Contato: alvaromd@wemind.com.br

Sobre o Blog

Este blog trata de transformações de mentalidades, processos decisórios e formas de relacionamento humano, ditadas pela tecnologia. A ideia é discorrer sobre tendências que ainda não se popularizaram, mas que dão mostras de estarem neste caminho, com a intenção de revelar o que têm de mais esquisito, notável ou simplesmente interessante, de maneira acessível e contextualizada.