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Álvaro Machado Dias

Repensando as decisões III: a natureza enganadora da intuição decisória

Álvaro Machado Dias

19/11/2019 04h02

waldryano/ Pixabay

A intuição decisória atrai as pessoas para seus mistérios há milênios. Recentemente, a hipótese do marcador somático, de Antonio Damasio, despontou nas fronteiras da economia comportamental com as neurociências, causando furor. Conforme argumento, ela tende a não funcionar na prática. As razões para tanto dão uma boa medida do que significa ser humano, no mundo real.

I. A intuição decisória no pulo do gato

Houve um tempo em que criar teorias extraordinárias era mais fácil. Pessoas de inteligência incomum abriam trilhas no conhecimento a partir de uma quantidade mínima de evidências e depois investiam toda sua criatividade e poder analítico para derivar princípios, criando campos inteiros.

Hoje em dia isso se tornou tarefa ingrata. A necessidade crescente de demonstrar experimentalmente que teorias preveem a realidade e fenômenos descritos em primeira mão de fato existem subiu muito o crivo da aceitação social do que se diz, tornando a comunidade intelectual e científica cada vez mais antenada às descobertas mais modestas. Um campo que ilustra isso muito bem é o das tomadas de decisão, onde as heurísticas traduzem este princípio, conforme assinalei em meu último ensaio.

Uma marca do pensamento heurístico é possuir laços fracos com os axiomas da racionalidade cognitiva, o que favorece a compilação de casos em que se decide de maneira pior por esta via do que pela alternativa analítica. Porém, há casos em que processos não analíticos geram resultados positivos. É neste contexto que a hipótese do marcador somático, de Antonio Damasio, tornou-se tão importante para o campo.

A ideia é relativamente simples e foi demonstrada experimentalmente inúmeras vezes, usando um simulacro eletrônico de baralho (42 cartas) e equipamentos de neurociências: considere quatro montes de cartas dotadas de valores definidos (e.g., +8, +4, +2, -8, -4, -2). As cartas estão viradas para baixo; se você pudesse desvirá-las e somar os valores, veria que existe uma hierarquia na atratividade desses montes.

O objetivo do jogador é acumular a maior pontuação possível, o que é análogo a descobrir o melhor monte, com o menor número de tentativas. Em geral, os pontos são convertidos em dinheiro, para que ninguém aja ao acaso.

O pulo do gato é que alguns montes têm cartas com valores mais extremos, que assim geram grandes ganhos (e.g., +8) e grandes perdas (e.g., -8), enquanto outros são mais estáveis ou "conservadores". Pela definição dos criadores desse jogo, os montes mais conservadores têm os melhores valores líquidos, de modo que a questão crítica se torna saber quanto tempo cada um demora para os priorizar.

O que é demonstrado, usando ondas cerebrais (EEG), neuroimagem (fMRI) e eletrofisiologia periférica, é que a retirada de cartas muito negativas tende a gerar uma espécie de trauma transitório, que é reativado pela menção de se sacar mais cartas do mesmo monte, levando à inibição inconsciente do comportamento disfuncional. Ou seja, há um "feeling" ruim que leva as pessoas a agir vantajosamente, mesmo que não tenham a capacidade intelectual para descobrir o melhor monte, pela via analítica.

Este feeling foi considerado a primeira demonstração neurofisiológica da intuição decisória. Ele se manifesta em duas fases: na primeira vez que toma um tombo, o jogador tem uma forte reação visceral, que afeta sua respiração, batimentos cardíacos e chega a mudar a própria condução elétrica da pele, em função de descargas de adrenalina. Isto cria uma memória poderosa, que abre as portas para uma nova dinâmica – a da intuição propriamente dita – a qual se manifesta pela evocação atenuada da memória traumática, gerando reações que permanecem restritas ao cérebro. É isso o que explica porque a inclinação intuitiva surge de maneira quase instantânea, ao mesmo tempo em que é sutil, sendo facilmente posta em dúvida pela razão.

Damasio juntou estas ideias na hipótese do marcador somático, a qual causou furor no meio científico e fora dele, em sua simplicidade visceral: primeiro gera-se um marcador somático do trauma que inunda a experiência por diversos segundos de dissabor; depois ele é emulado pelo cérebro, de maneira rápida e eficiente, à mera menção de se repetir a dose, o que caracteriza a intuição.

Sem negar sua sagacidade e brilhantismo, acredito que exista um leque de problemas com a generalização da hipótese, o que por sinal está alinhado ao espírito do nosso tempo, onde não se deve mesmo esperar que uma hipótese ou teoria (vale notar a sagacidade de Damasio em optar pelo primeiro termo) sirva para toda e qualquer situação.

A seção seguinte serve para mostrar porque, apesar de dominante, este modelo é incapaz de nos dizer como as intuições decisórias funcionam no dia a dia. Por fim, seguem algumas considerações para irmos além.

II. O erro de Damasio

Em "A grande aposta", filme de 2015 de Adam McKey, que adaptou o romance homônimo de Michael Lewis, o protagonista (Michael Burry, vivido por Christian Bale) é o proprietário de uma firma de investimentos que decide apostar contra o sistema imobiliário americano, por suspeitar de sua capacidade de se manter adimplente. Enquanto conta essa história, o filme narra a crise de 2008, onde se destaca o pouco conhecido fato de que algumas pessoas de visão ganharam muito.

Em vários momentos, Michael é pressionado a mudar sua estratégia – afinal, o mercado estava explodindo em oportunidades, sem o menor sinal de crise em seu horizonte.

Sua aposta é consciente, racional e ele é representado como o investidor que bateu o mercado por ter se mantido frio e crítico enquanto os outros celebravam ganhos fugazes.

Arrisco dizer que o filme fez tanto sucesso porque se remete a uma fábula infantil que muitos aprenderam a gostar – a da cigarra e a formiga – que por sua vez se tornou famosa pelo esforço doutrinário de pais preocupados em transmitir o espírito da renúncia das satisfações imediatas, em prol da possibilidade de se evitar punições severas, no longo prazo. Uma fábula sobre o que os economistas chamam de desconto do futuro e que também pode ser interpretada sob o signo do hedonismo e do princípio do prazer.

O ponto notável é que a cigarra de 2008 vive vários momentos de dúvida. A vida íntima que se esconde atrás de sua frieza queima. Cada investidor de sua firma que lhe ameaça ou insulta é como um espeto de ferro a lhe transpassar. Questionar-se é seu dia a dia. No final, o que acaba prevalecendo em cada um desses questionamentos é a sua intuição – não a modelagem hipotético-dedutiva sobre como o mercado deverá se comportar – mas seu feeling. Michael é um sujeito intuitivo até o último fio de seu cabelo comportado.

Um problema com o modelo de intuição decisória de Antonio Damasio é que ele só funciona quando as decisões mais vantajosas são as mais conservadoras. Nele não há espaço para histórias como a de Michael – afinal, na média, tudo o que se desvia do comportamento de grupo tende a consequências potencialmente mais desastrosas do que aquilo que segue.

Desbravadores costumam ser – ou, ao menos a se assumirem – intuitivos. Um mundo de empreitadas baseadas nos princípios de Damasio não teria contado com as descobertas marítimas do século XVI, nem com boa parte do que aprendemos a valorizar desde então, o que nos leva a um paradigma importante: exposição à risco, coragem e ousadia para ser e fazer diferente são condições sine qua non para a amplificação das recompensas. Certa está a criança: quem não arrisca, não petisca.

Evidentemente, o modelo de Damasio pode ser generalizado para recompensas também. Nesta visão, experiências negativas e positivas criam memórias intensas, as quais são neurologicamente ativadas quando surgem situações análogas, assim gerando as inclinações espontâneas que chamamos de intuição decisória.

Faz sentido e, confesso, por um bom tempo, vivi iludido por esta hipótese. Mas ela é falsa. O que faz a hipótese do marcador somático funcionar é que as experiências iniciais são fortes a ponto de gerar descargas de adrenalina que chegam à pele, coração e outras terminações do sistema nervoso autonômico. É isso o que caracteriza o trauma. As experiências positivas não tendem a compartilhar este perfil. Não se vê ninguém dizendo, doutor, estou traumatizado de prazer pois ganhei o prêmio Jabuti; o que se vê são pessoas traumatizadas por perdas, violências e outras experiências marcantes, de caráter negativo.

Há uma assimetria em relação à intensidade de experiências negativas e positivas, que impede a aplicação direta da hipótese do marcador somático para estas últimas. Para piorar a situação, intuições que desafiam o status quo tendem a se manifestar em contextos altamente tensos e, portanto, marcados por experiências negativas – vide o Michael – o que joga por terra de uma vez a ideia de que poderiam existir nas antípodas das intuições negativas, por troca direta de sinais.

Outro ponto, tão ou mais problemático, é que a vida não se parece com um jogo de cartas. Dentre os equívocos cometidos por cientistas comportamentais das mais diferentes áreas, nenhum é maior do que a assunção de que nossa existência pode ser adequadamente modelada através de ações recorrentes, como em muitos jogos.

Não é que estes não mereçam ocupar espaços importantes na compreensão da ação e do pensamento humanos, mas, é preciso cautela com as generalizações. Ninguém espera que de um monte de cartas saia um dragão voando pela sala; tanto pelo contrário, a ideia é que as pessoas usem a familiaridade crescente para escolher de maneira cada vez melhor. A estereotipia dos montes é parte da mágica.

Em completa oposição a isso, os momentos em que a intuição é mais exigida são aqueles em que nos encontramos frente a decisões que não remontam a nada que reconhecemos. Como eu disse em artigos científicos sobre este assunto, a grande tensão da intuição decisória não é com a racionalidade cognitiva, mas com a procrastinação e as soluções ao acaso.

Portanto, para realmente podermos compreender como a intuição decisória funciona no mundo real precisamos de um modelo que funcione igualmente para intuições inibitórias e proativas. E que sirva para situações novas.

III. Para fechar

Na minha visão, o grande problema do modelo de Damasio está na exclusividade da premissa que ele adota sobre a função da intuição nas tomadas de decisão. Segundo ele, o objetivo da intuição é atingir os melhores resultados práticos possíveis, em consonância com os registros de casos em que as pessoas decidiram de maneira intuitiva e isso se revelou benéfico e aqueles em que tentativas de intervir analiticamente deterioraram o desempenho.

Eu vejo a exclusividade da premissa como uma simplificação similar a do pessoal que tenta explicar comportamentos complexos humanos aplicando diretamente os artifícios teóricos que funcionam para se falar de macacos e outros mamíferos: não é que macacos e humanos sejam tão diferentes assim, mas os primeiros tendem a ter comportamentos mais facilmente descritos de maneira funcional. E ao forçarmos essa barra para explicar todos os comportamentos humanos como se tivessem função adaptativa, sem considerar que podem representar disfunções culturais ou soluções para problemas psicológicos sem paralelos na natureza, problemas aparecem.

Decidir é fazer um investimento na forma de credibilidade em uma opção, que em seguida deverá ser convertida em ação. No espaço entre a seleção da opção e a realização prática surgem dúvidas e inseguranças que podem minar a capacidade de seguir em frente. Trata-se de uma lacuna a ser preenchida com uma potência psicológica que no passado denominei de 'bem decidir'. Em muitas situações, decidir intuitivamente tem menos a ver com a maximização de resultados e mais com tal preenchimento.

A noção de que a intuição decisória também cumpre o papel de recurso psicológico relativiza um pouco a necessidade de tratá-la  exclusivamente em termos de pay-offs e outros termos derivados do pensamento econômico, sem negar que em algumas situações efetivamente adeque-se a tal paradigma.

Pense sobre isso. E fique à vontade para compartilhar suas ideias aqui embaixo.

No próximo ensaio irei apresentar minha hipótese sobre a relação entre a natureza dos problemas decisórios e o surgimento de inclinações intuitivas.  Será o último desta série. Até lá.

Sobre o Autor

Álvaro Machado Dias é neurocientista cognitivo, professor livre-docente da Universidade Federal de São Paulo, diretor do Centro de Estudos Avançados em Tomadas de Decisão, editor associado da revista científica Frontiers in Neuroscience, membro da Behavioral & Brain Sciences (Cambridge) e do MIT Tech Review Global Panel. Seus interesses intelectuais envolvem tomada de decisões de um ponto de vista cerebral, efeitos das novas tecnologias na compreensão do mundo, inteligência artificial, blockchain e o futuro da medicina. Contato: alvaromd@wemind.com.br

Sobre o Blog

Este blog trata de transformações de mentalidades, processos decisórios e formas de relacionamento humano, ditadas pela tecnologia. A ideia é discorrer sobre tendências que ainda não se popularizaram, mas que dão mostras de estarem neste caminho, com a intenção de revelar o que têm de mais esquisito, notável ou simplesmente interessante, de maneira acessível e contextualizada.