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Álvaro Machado Dias

A ideologia da revolução cognitiva II: a utopia californiana

Álvaro Machado Dias

08/01/2020 04h00

Ben Frieden/ Pixabay

A ideologia californiana é um agregado de princípios morais e políticos que mobilizou ativistas da tecnologia no período que vai de 1975 a 1990, inspirando projetos de software gratuito, hackerspaces e discussões públicas sobre direitos individuais e valores não mercantilistas. A entrada massiva de capital financeiro neste meio, durante os anos 1990, fez com se convertesse em simulacro de si mesma, papel que incorporou de maneira cada vez mais eficiente até os dias atuais.

 

1999, 24 anos no futuro. William Weston é o primeiro jornalista americano autorizado a visitar a pequena Ecotopia, que se tornou independente dos Estados Unidos em 1980. O país formado pelo norte da Califórnia, Oregon e parte do estado de Washington teme ser retaliado pelo gigante do qual se desprendeu e por isso evita se expor.

O dia a dia de Weston é retratado em um diário, onde se lê que no pequeno país a maconha é legalizada, a vida sexual é liberal e as pessoas são fundamentalmente empreendedoras. Ecotopia se diferencia ainda dos estados que permaneceram unidos pela igualdade de gênero e comprometimento ecológico de seu povo, igualmente empenhado no progresso tecnológico da humanidade.

O criador de Ecotopia (1975) é Ernest Callenbach, que pelas décadas seguintes repisaria que o livro não deveria ser interpretado como mera ficção sobre uma sociedade utópica – e por isto inatingível – mas como um elogio das transformações culturais necessárias para tornar a vida americana melhor.

Se, em termos morais, Callenbach bebeu na fonte do movimento hippie, seu entusiasmo pelo progresso tecnológico estava mais alinhado à agenda dos ativistas que vieram depois e que disseminaram as práticas do faça você mesmo e do software livre – alternativa aos direitos proprietários no capitalismo da informação. Sob a influência de Marshall McLuhan e outros, estes reconfiguraram a cartografia produtiva de São Francisco e redondezas, o que por sua vez se espalhou pelo ocidente, onde se tornou ideologia dominante.

McLuhan foi um intelectual de aforismas e desapego pela sistematicidade, compartilhando um gosto pelo impenetrável com outros tantos pensadores popularizados nos anos setenta e hoje criticados pela suposta inabilidade em transmitir com precisão – e submeter a escrutínios – as ideias que lhes são caras.

À sua maneira, antecipou o surgimento da World Wide Web (Tim Berners-Lee, 1989) e colocou no mundo a ideia de que surfamos entre fontes diversas de informação, a qual iria se tornar hegemônica muitos anos mais tarde, figurando entre as que melhor traduzem o ethos do milênio até aqui – não sendo, todavia, a que traduzirá o dos próximos trinta anos.

Suas ideias serviram de suporte à tese de que o progresso da tecnologia criaria espaços de comunicação mais horizontais e menos censuráveis, o que não deixa de ter grande parcela de verdade. Avançando nessa linha, também assumia que a evolução das tecnologias da informação e comunicação digital (ICTs) iria empoderar as pessoas contra governos e grandes corporações. Nesta parte errou mais, ao dar conotação progressista a um princípio agnóstico do ponto de vista ideológico e que, décadas depois, voltou-se contra seu criador.

Há também quem diga que, na realidade, McLuhan era um conservador que odiava a contracultura, a qual comodamente evitava confrontar. À favor desta tese estariam supostas evidências de que declarou que a guerra do Vietnam era mais um evento midiático do que real e a sugestão de usar o poder da televisão para acalmar as revoltas tribais na África do Sul, que fervia sob o bizarro apartheid. Não sendo um especialista em McLuhan, calo-me sobre isso.

De qualquer maneira, suas ideias foram decisivas para que os sucessores dos hippies (techno-hippies) popularizassem uma terceira via à polaridade da guerra fria, manifesta na liberdade de escolha e organização para gerar aquilo de que outra maneira seria tratado como produto.

As comunidades open source, fóruns criativos, hacker spaces, hackathons e afins são desdobramento de dois valores fundamentais: organização descentralizada e geração de alternativas à acumulação privada, no domínio das ICTs.  Nas rodas em que surgiram o GNU (Stallman, 1983) e projetos paralelos, estes princípios combinavam-se à noção de que a tecnologia seria o leit motiv de toda a organização social (o chamado reducionismo tecnológico) e, por isso, tenderia a triunfar sobre os esforços para lhe suprimir.

Tais elementos se articularam difusamente na "ideologia californiana", conjunto de crenças organizadas em torno de um ideal de sujeito que defende a liberdade individual e os princípios participativos, conforme Barbrook e Cameron descreveram num excelente ensaio de 1995.

A ideologia californiana nasce do encontro de formas distintas de rechaço do poder do Estado e das grandes conglomerados em prol dos direitos dos membros da grande "tribo global", razão pela qual é intrinsicamente contraditória, já que a enorme força econômica da Califórnia é intimamente relacionada aos investimentos do Estado – especialmente os do departamento de defesa, que não apenas bancou o surgimento da internet (ARPANET, 1969), como há diversas décadas vem garantindo que rios de dinheiro corram em direção ao Pacífico, por linhas de investimento estratégico em tecnologia.

O acesso a este capital abriu espaço para voos ousados e experimentais, que deram origem a algumas das mais notáveis tecnologias da atualidade, como aprendizado de máquina e o blockchain (da criptografia assimétrica aos registros distribuídos, as principais fagulhas saíram de pesquisas subsidiadas pelos militares).

Estendendo a linha das contradições, muitos dos inventores que personificaram a nova ideologia mantinham relações pregressas com o status quo empresarial, oriundas de sua participação nas dinâmicas de digitalização das grandes corporações (a chamada 3a. Revolução Industrial dos anos 1960-70), cujo legado maior foi o afastamento definitivo de empresários e executivos do processo produtivo, por meio de telas, KPIs (indicadores de desempenho) e gráficos que atualizam a si mesmos.

A tensão entre forças pró e anti-establishment resolvia-se na visão de que todos poderiam ser autênticos, socialmente comprometidos e remediados materialmente. Isto não seria contraditório, dadas as oportunidades de multiplicação de valor das novas tecnologias (ICT – vide acima), que prometiam guardar distância respeitosa do mainframe industrial e do saco de dormir.

Thomas Jefferson (Pixabay)

Apesar da inspiração anarquista, eram comuns as referências ao "pai fundador" Thomas Jefferson (terceiro presidente americano), crítico da aristocracia da terra e autor da famosa frase: "Consideramos estas verdades autoevidentes: que todos os homens são criados iguais, dotados pelo seu Criador de certos Direitos inalienáveis, que entre estes estão a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade".  É uma dupla ironia, pelo fato de excluir as mulheres e por ser Jefferson um conhecido senhor de escravos, que reconhecia a humanidade destes, mas considerava que os direitos proprietários impunham-se sobre tal questão.

Em consonância com a venerada figura, a ideologia californiana nasceu à sombra do discurso do bem comum, mas foi pendendo para outra proposição de valor, conforme veremos a seguir.

O ocaso da utopia californiana

A venda de softwares foi uma inovação tardia da 3a. Revolução Industrial. Até 1974 não havia registro para eles nos Estados Unidos. Aliás, antes de pensar em ajudar a resolver os problemas de saneamento da África, Bill Gates ajudou a mudar a história do mundo através de uma incansável campanha pelo endurecimento das regras de compartilhamento de software, que tomou mais de uma década até de fato lograr êxito (vale ler sua "carta aberta aos hobistas" de 1976).

Este progresso foi concomitante ao surgimento de desincentivos variados às comunidades de software livre, bem como barreiras para as políticas mais intuitivas de alfabetização digital; por outro lado, tornou a área muito mais atraente para empresas e desenvolvedores. E o mercado explodiu.

Esta fase de expansão financeira das empresas de ICT teve consequências poderosas sobre a ideologia californiana, consolidando a hegemonia do laissez-faire sobre o espírito distributivo da ágora digital e seus discursos alternativos ao establishment.

A oposição ao intervencionismo repressivo do estado foi quase que inteiramente convertida em lobby contra a taxação da nova economia em moldes tradicionais, ao passo que o ativismo a favor da limitação do poder das grandes corporações sobre a tecnologia da informação foi cirurgicamente removido das arenas políticas relevantes.

A ideologia californiana foi desidratada e, para muitos, morreu – mais ou menos junto com o muro de Berlim e outras estruturas contraditórias que marcaram época, enquanto o conceito de software livre renasceu como modelo de negócio, o que espero discutir em outra ocasião, dada sua importância inequívoca para a economia mundial atual (i.e., Android) e, sobretudo, da próxima década.

Livre de amarras, o começo da década de 1990 foi palco da naturalização da prática dos fundos de investimento de aportar quantidades massivas de capital nas empresas de tecnologia que, por sua vez, eram obrigadas a acomodar financistas nos conselhos gestores e cargos de confiança. Como é de praxe em se tratando de estratégia de fundo, o objetivo mais alto era a abertura de capital – exatamente como se repetiu no mercado de criptomoedas, através dos ICOs dos anos 2016-2017.

O apetite era tanto que empresas de base analógica interessadas em levantar capital passaram a incluir dotcom e outras referências à internet no nome. Funcionava. Aliás, funcionou até a virada do milênio, quando o mercado furou a bolha do dotcom com uma agulha forjada pelo descolamento do preço das ações dos fundamentos das empresas negociadas na Nasdaq, as quais os ataques de 11 de setembro de 2001 ajudaram a sepultar.

Ali, uma nova forma de se relacionar com o mundo a partir da tecnologia começou a surgir. É ela que em breve deixaremos para trás.

Para fechar

Assistir aos vídeos com propostas de produto em plataformas de crowdfunding como o Kickstarter é garantia de escutar que seus proponentes querem tornar o mundo um lugar melhor. Esta ideia, junto com outras como a defesa pública da liberdade individual pelo Facebook ou a crítica de Trump ao suposto esquerdismo do Google remontam a um passado em que os precursores destas empresas endossavam visões idealistas, capturadas pelo conceito de ideologia californiana.

Apesar de seu otimismo, a ideologia californiana desde sempre foi frágil e ambígua, dado que os espaços encontrados para a sua manifestação surgiram dos subsídios do governo americano e dos contratos com as grandes corporações, que se digitalizaram a partir da metade dos anos 1960. Assim, quando o grande capital entrou para valer no ramo da produção de software, esta acabou sufocada por ideais bem mais pragmáticos.

O que seguiu não foi nenhuma forma de pessimismo, mas uma verdadeira euforia mercadológica, que em 1994 atingiu o mercado de capitais e lá ficou até o grande crash de 2001-2002, que converteu cerca de cinco trilhões de dólares (atualizados) investidos em tecnologia em penny stocks (aquelas ações negociadas pelo lobo de Wall Street e sua gangue de Nova York).

As empresas de tecnologia que reconhecemos como impérios hoje em dia surgiram sobre esta terra fatigada, a qual semearam com a internet 2.0, cuja lógica de funcionamento discuti em outra ocasião. Vale entendê-las de um ponto de vista ideológico também. Para isso, espero que nos encontremos novamente por aqui.

Leia também:

A ideologia da revolução cognitiva I: os algoritmos por trás do mundo

Sobre o Autor

Álvaro Machado Dias é neurocientista cognitivo, professor livre-docente da Universidade Federal de São Paulo, diretor do Centro de Estudos Avançados em Tomadas de Decisão, editor associado da revista científica Frontiers in Neuroscience, membro da Behavioral & Brain Sciences (Cambridge) e do MIT Tech Review Global Panel. Seus interesses intelectuais envolvem tomada de decisões de um ponto de vista cerebral, efeitos das novas tecnologias na compreensão do mundo, inteligência artificial, blockchain e o futuro da medicina. Contato: alvaromd@wemind.com.br

Sobre o Blog

Este blog trata de transformações de mentalidades, processos decisórios e formas de relacionamento humano, ditadas pela tecnologia. A ideia é discorrer sobre tendências que ainda não se popularizaram, mas que dão mostras de estarem neste caminho, com a intenção de revelar o que têm de mais esquisito, notável ou simplesmente interessante, de maneira acessível e contextualizada.