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Álvaro Machado Dias

O papel da tecnologia na arte contemporânea

Álvaro Machado Dias

03/06/2019 03h55

A arte contemporânea a partir de três objetivos fundamentais

Em "Histórias do agora digital", Christiane Paul, a curadora adjunta de arte digital do Whitney Museum (NY) é taxativa: "entre em qualquer galeria ou museu hoje e você irá encontrar obras que usam tecnologias digitais em algum ponto de sua produção" (https://bit.ly/2JV0xT9). Aquilo que popularmente entende-se como tecnologia está tão infiltrado na arte contemporânea, quanto em qualquer outra área do desenvolvimento humano, à exceção da educação.

Porém, uma particularidade da arte e de algumas outras disciplinas como a filosofia tecnológica e a psicologia cibernética é que ela tem um ramo em que a tecnologia transcende seu papel instrumental e é tomada como arcabouço inspiracional e criativo. Este domínio possui uma representatividade menor do que o das obras que usam a tecnologia de maneira incidental. Porém, tal está crescendo muito e precisa ter sua compreensão atualizada à luz do momento tecnológico em que vivemos.

Minha visão é a seguinte: a arte da nossa era encontra seu valor na medida em que se revela vanguardista, no plano em que historicamente é representada. Existem três direcionamentos fundamentais para se tentar chegar lá. A arte tecnológica não é nenhuma exceção quanto a isso; entretanto, vivencia-os de maneira peculiar, em função de questões trazidas pelo progresso tecnológico e ampliação das interações digitais. Enunciar estas questões, vinculando-as aos direcionamentos tomados pelos artistas tecnológicos, na tentativa de criar trabalhos mais memoráveis, é a recomendação para entender a estrutura profunda deste universo fascinante.

Dizem que Mark Rothko (1903-1970) estava conversando com Harold Rosenberg, crítico de arte da New Yorker, quando disse "não expresso meu ego em minhas obras, mas o meu anti-ego" (https://bit.ly/2MlEJCm). Frase curiosa, diriam alguns, tomando por base sua paleta de cores intensas e a ênfase que deu à remoção de barreiras à expressão emocional. Mas não. Sua visão da subjetividade na criação artística desdobra-se na inspiração para desenvolver peças depuradas de maneirismos, tal como se desse modo pudesse livrá-las de si mesmo e dos tormentos que o levaram ao suicídio, assim permitindo que ascendam ao status de formas autônomas de experiência.

Esta independência em relação ao artista é a via para o primeiro grande objetivo da produção vanguardista. Aqui, a ideia é que a obra não seja uma espécie de relato de caso ou extravasamento de particularismos, mas que estimule percepções e sentimentos estéticos que as pessoas reconheçam como relevantes em si mesmos e alheios ao repertório conhecido até aquele momento, tornando a obra intrinsecamente propositiva. Isto vale ainda mais se tais sentimentos estéticos despontarem como mais interessantes e disruptivos que o status quo, tomando assim o seu lugar.

Pense em Braque e Picasso ou no essencialismo espacial dos toquinhos de Mira Schendel (https://bit.ly/2Z1P1Jd). A relevância criativa não se restringe aos efeitos imediatos que cada peça produz, mas à maneira como juntas introduzem um novo paradigma sobre os sentidos, que pode ser explicado sem volteios e relacionado a trabalhos em que se mostra acima de quaisquer maneirismos ou idiossincrasias.

Uma segunda linha intencional na arte contemporânea é a que privilegia o questionamento sobre a afirmação. A ideia é que a obra de arte realize o que Edmund Husserl chamou de suspensão fenomenológica – etapa necessária ao conhecimento sobre a realidade percebida, que ganha forma quando inibimos nossos juízos e procuramos redescobrir o papel das coisas tal como se tivéssemos aportado aqui recentemente; trata-se de um efeito também atingido pela meditação e alucinógenos. Um dos desfechos mais celebrados pelo método é a ressignificação, onde o urinol no museu consagrou-se como símbolo mais elevado. Parte relevante da arte contemporânea utiliza-se deste método centenário de suspensão de juízos, seguido da alteração estrutural ou deslocamento "metonímico" de formas e objetos de seu contexto funcional original, revelando assim seu estranhamento ou poder de fascinação. Às vezes funciona de maneira magnífica; outras, conduz a catálogos de curiosidades, insuficientemente conectadas para segurarem uma mostra ampla ou estabelecerem um diálogo contributivo, no domínio da evolução das vanguardas.

A terceira grande linha é a da arte como veículo para denunciar realidades abusivas ou recalcadas, sob a premissa de que as proposições críticas têm sua penetração aumentada, conforme são embaladas esteticamente. Trata-se do mesmo princípio que inspira o ativismo no cinema comercial ou, ainda, os comediantes mais engraçados, como Louis C.K. Em contraste com o que se aplica a estes últimos, acredito na existência de insuficiências tensionais para tanto, no plano da arte de vanguarda. O sucesso da estratégia do bom comediante ao colocar em cheque a prática das coisas é determinada pelo fato de que existem descolamentos relevantes entre aquilo que falamos e fazemos de forma rotineira e os juízos de valor que se manifestam de maneira subjacente. Ao nos conduzir ao questionamento da primeira camada, este tipo de artista induz-nos a desinibir a segunda, o que proporciona satisfação e riso. Esta relação entre planos de significação não se reproduz na experiência estimulada pela arte vanguardista, já que realidades estéticas ocidentais do século XXI não são inibições sociais, cujo desvelo causa frisson – não entre os que frequentam o meio. A situação é análoga àquela que ocorre quando o ator retorna à cena pelado e ninguém que frequenta teatro dá a mínima para a suposta rebeldia.

Não é que inexista papel para a instrumentalização discursiva na arte contemporânea e que o artista deva ser uma espécie de artesão de constructos positivistas; longe disso, limada de toda transcendência, a arte vanguardista carrega o privilégio de ver de fora os costumes e técnicas que mais fortemente definem a vida pragmática. A questão é que a produção que se restringe a tanto tende a não satisfazer as aspirações mais profundas do seu público, o qual está psicologicamente equipado para consumir questionamentos sem grandes tensões e dificuldades, neutralizando-os à revelia. É o velho problema da pregação para convertidos, inibindo impactos como os gerados pelo traçado em perspectiva de Filippo Brunelleschi, pela apropriação impressionista do processamento cognitivo do contraste entre cores ou pelas serigrafias de Andy Warhol.

 

A tecnologia através da arte

A arte tecnológica que encontramos hoje em dia em museus, galerias e espaços alternativos ao redor do mundo despontou na segunda metade da década de 1970, sobretudo a partir da vertente conhecida como new media art. Ao passo que podemos definir o expressionismo pela premissa de que a realidade objetiva diverge da subjetiva, a qual que deve ser priorizada na expressão artística, o suprematismo pelo apreço geométrico, paleta restrita de cores e alinhamento a preceitos antimaterialistas, bem como o surrealismo pela noção de que o inconsciente precisa ser canalizado para que a criatividade floresça, a new media art é menos definível por prerrogativas sobre como fazer arte e mais pela adoção de meios alternativos à tela, escultura ou texto.

Não é que seja completamente depauperada de princípios. Nela encontramos, por exemplo, a tese do esgotamento dos formatos tradicionais e a premissa de que o desenvolvimento tecnológico é uma das questões fundamentais da nossa era, o que a despeito de ser sempre verdade, pode ser relacionado de maneira particularmente aguda ao boom da computação digital, no final dos anos 1970, que ficou conhecido como revolução digital ou terceira revolução industrial.

A questão é simplesmente que isso não é suficiente para que possamos falar em um movimento artístico bem delimitado em seus princípios; melhor tomar a new media como um conjunto de tendências vanguardistas, reunidas pela pesquisa de novas formas de expressão que, sob forte inspiração da computação, vieram a ser predominantemente digitais. Arte computacional ou "digital", para simplificar.

Os direcionamentos objetivos da arte digital seguem as três grandes linhas que se aplicam à arte de vanguarda como um todo: afirmação de formas inovadoras de arrebatamento estético, alinhadas aos últimos desenvolvimentos da informática, questionamento e ressignificação dos meios tecnológicos e instrumentalização engajada. Para satisfazê-los, a arte digital aparentemente toma para si espaços criativos quase infinitos; o dia a dia, entretanto, é menos colorido, marcado por três grandes desafios contextuais.

O desafio mais evidente é superar o baixo engajamento de base do público, o qual se acentua frente a este tipo de arte, na medida em que tal se emparelha mentalmente aos objetos culturais com os quais estamos todos condicionados a nos conectar. Não é que o público se negue a fazer aquilo que dele é esperado numa exposição de arte digital e, por isso, acabe pagando um preço alto, na forma de desconexão e tédio. Pelo contrário, as pessoas topam se posicionar em frente da obra e até seguir instruções para tomarem ativamente parte em instalações tecnológicas. O problema está dentro, onde muitos processam a proposta da obra tal como se estivessem em um cenário decisório entre mídias competitivas, o que quase que invariavelmente conduz ao retorno rápido à bolha em que se encontravam em primeiro lugar.

Esta perda rápida de conexão pode ser conceitualmente representada de maneira econômica. No caso, existe uma disputa cerebral no domínio da economia da atenção, onde a intenção do artista dá com os burros n'água quando o custos cognitivos de responder aos requisitos da obra, ponderados pela expectativa de retorno de fazê-lo, possui utilidade esperada inferior à manutenção da atividade atencional no mundo mental em que cada um coabita, com seus interlocutores remotos e devaneios típicos. A briga é dura, o hábito se retroalimenta e o futuro não parece aliviar. Tanto pelo contrário, a competição vem se acirrando, em consonância com os platôs definidos por cada geração de telas, dispositivos sonoros e projeções volumétricas (AR/VR/hologramas).

O segundo fator é determinado pela concorrência indireta com outros produtos culturais, do ponto de vista conceitual e temático. Considerando a relação entre arte e sociedade como figura e fundo, é de se considerar que este último incorporou uma indústria fervilhante de entretenimento tecnológico e produtos dos mais variados, caracterizados por reservarem ao arrebatamento estético papel fundamental. Verdadeiras filosofias de design foram criadas pelas grandes empresas de tecnologia, que hoje contam com comunidades em que os sujeitos talentosos são contados às centenas. Dois exemplos são o material design (Google) e o flat design (Apple). Basta uma passada no Behance (https://www.behance.net/) para entender o nível da conversa.

Tornou-se difícil para artistas independentes e coletivos ombrear o apuro das produções digitais de empresas que não incluem questões estéticas entre as suas maiores preocupações, mas que nem por isso deixam de investir pesadamente nesta seara e de cultivar o hábito de contratar expoentes da arte e do design para dirigir suas divisões de produtos. Vide Salesforce, Google e Microsoft. Simultaneamente, há a competição tácita com as agências que se posicionam de maneira análoga e, de quebra, não poupam esforços para diluir as barreiras entre propaganda e arte.

O terceiro desafio possui contornos técnicos: é muito difícil encantar usando recursos computacionais com os quais não se tem intimidade, ao passo que adquirir desenvoltura no uso dos mesmos depende de competências de base que demoram anos para se firmar na mente daqueles com inclinação e estamina para tanto. Quando o artista insiste em se pautar por recursos que desconhece, facilmente torna-se refém dos mesmos, o que resulta em peças ingênuas, que geralmente não surpreendem.

O percurso em sentido a cada um dos objetivos anteriormente descritos é tensionado por esses desafios privativos da arte digital, em sua busca pela consagração. No todo, quem mais sofre é a arte como denúncia e desvelo de recalques, começando pela crítica social, dado que posicionamentos desta natureza costumam aparecer em propagandas bonitas e sensíveis, em consonância ao princípio de que as tensões de fundo há muito desapareceram. Vide Benetton.

Consideremos um caso atual. Entre setembro de 2018 e abril deste ano, Tamiko Thiel esteve com "Unexpected Growth", no Whitney Museum (NY). A obra consiste de uma animação em realidade aumentada, na qual figura um fundo de mar, com dejetos humanos e pode ser conferida aqui: https://youtu.be/pKrwBhgNkBg. Mais ou menos na mesma época a agência FF New York criou uma propaganda para a Sea Shepard, também denunciando a poluição marítima, a qual pode ser encontrada aqui: https://youtu.be/cYPeu_fdWas. Compare-as e tire suas próprias conclusões.

O cenário não é menos espremido para as críticas endereçadas às questões típicas do universo tecnológico, a despeito de tal não interessar às marcas, exceto muito pontualmente, para contrabalancear seus próprios excessos. Aqui, a questão é que formatos e posicionamentos digitais de grande eficácia já foram estabelecidos para tanto. O mundo da tecnologia é coalhado de fóruns para ações anti-establishment, libertárias ou ativistas de repercussão global. É difícil competir com o Wikileaks ou os cypherpunks, em termos de discurso e ativismo contra governos, corporações e os bots que nos perseguem pela internet.

A procura pela ressignificação tecnológica, por sua vez, é profundamente relacionada à necessidade de entender em profundidade o substrato técnico em uso, o qual é invariavelmente mais complexo do que parece. Um exemplo: existem muitos websites artísticos, alguns lindos, mas poucos com destaque no plano da arte mais vanguardista. A razão para tanto é um pouco sutil, mas vou tentar explicar. O sujeito que concebe em um website, de maneira geral, tem em mente uma estrutura digital que exibe conteúdos, os quais se distinguem daquela, mais ou menos como obras – ou salas expositivas customizadas – distinguem-se do prédio da galeria, nos arranjos espaciais convencionais. Este aparato que retém e exibe possui diferentes subdivisões que não podem ser renderizadas ao mesmo tempo e que, em função disto, chamamos de páginas; estas dependem de algumas regras para que possam ser exibidas pelos navegadores.

Para facilitar o lançamento de novos websites, algumas empresas incorporaram os recursos mais usuais em unidades de gestão de conhecimento pré-moldadas, como WordPress e Drupal que, por sua vez, têm como alternativa, as versões desenvolvidas na unha. Tal unha tende a fazer ela própria um apanhado de trechos de código e convenções para colocar a estrutura de pé. E tudo isso junto explica porque, do ponto de vista estrutural, websites tendem a ser parecidos.

Ao passo que a vasta maioria dos websites artísticos parte da concepção de que a arte em si é o conteúdo disponibilizado, fato é que a tecnologia digital, que supostamente está no centro do trabalho, é completamente agnóstica àquilo que é carregado como texto, vídeo ou imagem. Ignorar tal ponto é mais ou menos como desconsiderar o papel dos materiais na determinação do potencial disruptivo de um projeto arquitetônico.

Percebi a relevância desta questão há uns quatro anos. Eu tinha sido comissionado para criar a obra digital Encephalon (o Cubo das neurociências, que fica no segundo andar do Museu do Amanhã) e estava pensando bastante em arte, apesar de ter total clareza de que não pertenço a este meio, nem jamais irei pertencer. Mesmo assim, em conversa com alguns artistas, pensei em ajudar a lançar o que propus chamar de "Web as Art". A ideia seria que esta modalidade criativa envolvesse artistas digitais conscientes do ponto colocado acima que, com o conhecimento técnico necessário, colocassem em suspensão a própria noção do que é um website. Não dá para fazer isso sem entender e, de certo modo, contemporizar certas noções relativas à arquitetura computacional para este meio que Tim Berners-Lee criou e que chamamos de World Wide Web. Encrenca feia, sem dúvida, mas de enorme potencial.

Porém, num daqueles momentos insólitos de tão sincrônicos, deparei-me com um artista muito criativo, que não apenas tinha pensado a mesma coisa, como efetivamente tinha inventado esse novo formato digital, o qual estava em exposição numa galeria nova iorquina. Seu nome é Rafaël Rozendaal e o trabalho em questão pode ser visto aqui: https://www.newrafael.com/websites/. Eis um bom exemplo de ressignificação, que não por acaso já foi visto por mais de 60 milhões de pessoas.

Finalmente, chegamos aos artistas digitais que efetivamente conseguem assumir um papel radicalmente propositivo, gerando obras com o poder de nos ensinar a ver um mundo tecnológico desconhecido e mais relevante. Estes são como oráculos, antecipando tendências de alto interesse para a indústria, com a qual invariavelmente tendem a flertar, elevando ainda mais a barra de superação daqueles que vêm a seguir.

Quanto mais competitivo o ambiente, mais estonteante a criação. Isso explica o fato da arte digital ter atingido níveis hiperbólicos de brilhantismo propositivo no eixo Japão-São Francisco, onde o coletivo Teamlab desenvolve suas representações transcendentais do visível, as quais vêm se tornando essências para o mundo da arte e para a própria evolução da tecnologia. Avalie por você mesmo e se um dia puder, deixe o celular no hotel e vá conhecer de perto: https://borderless.teamlab.art/; https://www.teamlab.art/.

Sobre o Autor

Álvaro Machado Dias é neurocientista cognitivo, professor livre-docente da Universidade Federal de São Paulo, diretor do Centro de Estudos Avançados em Tomadas de Decisão, editor associado da revista científica Frontiers in Neuroscience, membro da Behavioral & Brain Sciences (Cambridge) e do MIT Tech Review Global Panel. Seus interesses intelectuais envolvem tomada de decisões de um ponto de vista cerebral, efeitos das novas tecnologias na compreensão do mundo, inteligência artificial, blockchain e o futuro da medicina. Contato: alvaromd@wemind.com.br

Sobre o Blog

Este blog trata de transformações de mentalidades, processos decisórios e formas de relacionamento humano, ditadas pela tecnologia. A ideia é discorrer sobre tendências que ainda não se popularizaram, mas que dão mostras de estarem neste caminho, com a intenção de revelar o que têm de mais esquisito, notável ou simplesmente interessante, de maneira acessível e contextualizada.