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Álvaro Machado Dias

Como a psicologia dos influenciadores gerou uma crise global de confiança

Álvaro Machado Dias

13/08/2019 07h46

As mídias sociais estão sob a mira de reguladores e organizações não governamentais, ao redor do mundo. Entre as diversas críticas, destaca-se a de que estimulam sofrimento mental e a produção de conteúdos tóxicos, por meio de sistemas de incentivos que funcionam particularmente bem entre os mais novos. O texto de hoje procura explicar como isso funciona, do ponto de vista da psicologia dos influenciadores.

As mídias sociais estão num ponto de virada. O Instagram está conduzindo um teste de remoção do contador de likes da interface pública dos perfis, em sete países, incluindo o Brasil, conforme amplamente reportado pela imprensa local. O Twitter vem testando um aplicativo novo (Twttr), onde as medidas de engajamento não ficam imediatamente visíveis, enquanto reavalia todo o seus sistema de incentivos, incluindo os retweets, conforme destacado pelo próprio CEO da empresa (https://bit.ly/2ZbbJiO). Neste mês, o número de inscritos nos canais com mais de mil inscritos do YouTube deixará de ser exibido com exatidão, dando lugar a um arredondamento, não apenas para os usuários comuns, como para as ferramentas de analytics, significativamente afetadas pela mudança.

Em abril deste ano, a agência regulatória do Reino Unido conhecida como ICO (Information Commissioner's Office), que se relaciona diretamente com parlamento britânico, lançou uma consulta pública a respeito de um plano de dezesseis medidas focadas na proteção de menores e da privacidade, frente ao apetite das plataformas de mídia social. No centro da consulta está a proposta de veto ao botão de Like do Facebook, Instagram e Snapchat (streak) para todos aqueles que tiverem menos de dezoito anos (https://bit.ly/2PU6Iak). Uma das justificativas é que a funcionalidade manipula comportamentalmente o tempo de exposição à rede social e a disposição para compartilhar informações pessoais.

Neste meio tempo, o Facebook aceitou pagar U$ 5bi para que uma investigação de violação de privacidade conduzida pelo FTC (Federal Trade Comission) fosse encerrada; trata-se da maior multa da história do órgão. Mais relevantemente ainda, o acordo limitará os poderes de Zuckerberg sobre questões relacionadas à privacidade, tornando obrigatória a presença de uma comissão independente que se sentará com os membros do conselho gestor da empresa. Este aspecto também está intimamente ligado às curtidas, as quais permitem inferir idade, gênero, orientação sexual, perfil religioso, perfil político, personalidade, uso de drogas e mesmo QI de quem contribui com esse tipo de input. Vale checar este paper publicado na prestigiosa PNAS e citado mais de 1600 vezes para entender melhor como funciona: https://bit.ly/2UI6Drs.

Curtidas também estão sendo mais e mais relacionadas às Fake News, problema endêmico desta era. De um lado, notícias e outros conteúdos tendem a possuir maior apelo em função de seu tom mais extremo, rendendo mais curtidas do que publicações ponderadas. De outro, a permissividade de quem publica conteúdo falso transita para a compra de curtidas, cujo crescimento é inversamente proporcional ao escrutínio do internauta médio, arredondando a bola de neve.

Há um movimento crescente de oposição a estes excessos, com sede ideológica na Europa e ramificações pelos Estados Unidos e América Latina, que vem ecoando entre os próprios empresários do meio. Por exemplo, em uma palestra recente (https://bit.ly/2DD21wO), Jack Dorsey (Twitter) declarou se arrepender de ter criado o botão de Like e de ter dado excessiva importância aos retweets, reconhecidos por seu papel na rápida disseminação de Fake News. Alguns especialistas em comportamento digital, como Kane Faucher (Western University), começam a falar em transformação irreversível nas mídias sociais (https://bit.ly/2Y220yI).

Não se pode ignorar que a sinceridade de Dorsey, em consonância com o que as outras plataformas de mídia social vêm fazendo, alinha-se a interesses alheios às pressões dos reguladores e intelectuais – mas não dá para assumir que é só isso.

Em meu último texto, propus algumas ideias para entender como esta indústria gigantesca se formou, a partir da coordenação do empenho para gerar e compartilhar conteúdos, com a disposição espontânea para dar curtidas, estrelinhas e, de maneira não menos importante, fazer comentários. De acordo com a hipótese desenvolvida, na origem da primeira tendência está o fato de que o compartilhamento reforça o aprendizado supervisionado, que é intrinsecamente recompensador e precede a nossa espécie, tal como se pode observa pela ubiquidade dos comportamentos lúdicos entre nossos ancestrais. A segunda emerge do senso reciprocidade, que está na base do comportamento moral. Este, por sua vez, é rapidamente substituído pelo interesse pessoal, na medida em que curtidas aumentam as chances de que o mundo virtual – e, em menor grau, físico – molde-se às aspirações daquele que se dedica ao compartilhamento de seus juízos.

Tal modalidade simples e direta de relacionamento cresceu e se transformou. Hoje em dia é difícil imaginar localidade, produto ou questão prática que não tenha sido objeto de foto, texto ou vídeo, criado para o compartilhamento digital. Para muita gente, trata-se de uma forma muito valiosa de contato com o mundo, ainda mais relevante que a propagandeada capacidade de consolidar elos sociais fracos, satisfazendo aspirações e maximizando oportunidades pelas redes sociais (subtipo de mídia social, focado em relacionamentos, como Facebook e Instagram).

Por meio dela, parte significativa dos relacionamentos digitais passou a se dar com produtores independentes de conteúdo, cuja atração é determinada pela capacidade de satisfazer aspirações afetivas ou de conhecimento, nos intervalos disponibilizados para tanto. Formou-se assim o que vem sendo chamado de economia da atenção que, a despeito do nome, é uma forma de produção de valor envolvendo seguidores, tempo de visualização e cliques, sendo mais propriamente uma economia do envolvimento. Em tal domínio, a capacidade de monetização das grandes empresas de tecnologia é diretamente relacionada à percepção de que satisfazer as aspirações da audiência vale a pena – de que postar é bom. Isto desembocou em esforços massivos para elevar a percepção de impacto de quem contribui mais seriamente com conteúdo, de maneira endógena, pelo uso dos sistemas de recomendação para divulgar organicamente o que produzem aumentando as curtidas e seguidores, e de maneira exógena, pela possibilidade de monetizarem essa produção. O grande porém é que estes recursos, junto com seus acessórios, tendem a gerar consequências negativas para os envolvidos.

As seções que seguem descrevem três dos mais relevantes efeitos negativos, a partir de suas manifestações psicológicas, os quais ajudam a entender a origem das reações em curso às mídias sociais.

 

Ancoragem e ajuste faz os que almejam popularidade se sentirem miseráveis

Por razões diversas damos muito mais valor a algumas coisas do que nossos pares. É assim que funcionam as paixões e também é como as pessoas que fazem passagens bem-sucedidas da adolescência para a vida adulta aprendem a se diferenciar.

Quando representado em seu caráter complexo e abstrato, o valor desliza sobre aqueles que o põe em circulação, conforme descrito de diferentes maneiras por filósofos e economistas da segunda metade do século XX. É isso o que explica porque a desigualdade incomoda aqueles que estão na parte debaixo da gangorra, mesmo que o parque de diversões como um todo esteja situado no alto de uma montanha.

Tal paradigma vale para todo tipo de desigualdade e, em si, não é nem totalmente bom, nem totalmente ruim, na medida em que serve de estímulo à alocação de esforço para se equiparar, com efeitos positivos sobre o ecossistema como um todo, ao mesmo tempo em que estimula o acento de dicotomias por parte de quem está na outra ponta, com consequências negativas diversas, às quais muitas vezes vão ao encontro das reações que emergem da impotência para progredir, fraturando a sociedade.

As medidas de satisfação relacionadas à base de seguidores possuída nas mídias sociais seguem este princípio, sendo relativas aos números da categoria, os quais são projetados sobre os outros como se fossem inalienáveis dos mesmos. O princípio também é aplicado a si próprio, tendo por referência os influenciadores mais populares, numa versão da heurística conhecida como ancoragem e ajuste, onde a percepção do valor próprio é dada pela magnitude da depreciação (ajuste) que segue da representação dos mesmos como ideais de si (âncoras). Com isso, índices um dia almejados passam a não despertar mais do que um instante de satisfação ou orgulho, quando atingidos, especialmente se a rede e seus extremos seguem ganhando terreno.

Não é fácil para quem vive este circuito perceber o contrassenso, dada a disponibilidade do argumento de que a audiência elege ou "ama" apenas os campeões de popularidade, não importando os valores absolutos. A consequência é um estado de angústia persistente, especialmente entre os mais jovens e inseguros, que passam a organizar suas vidas em torno de visualizações, Likes e seguidores, puxando seus pares a fazer o mesmo, sem perceber que estão no fim da fila dos beneficiários de tal esforço. Trata-se de um fenômeno particularmente relevante no Instagram, que está na base da consulta para proibir o botão de Like nas postagens do Reino Unido, dirigidas as menores, conforme mencionado acima.

A superioridade do medo de perder sobre o desejo de ganhar

Ambos os hemisférios cerebrais processam cognições e afetos. Porém, o hemisfério direito dos destros tende a ter uma participação proporcional um pouco maior nestes últimos. Um princípio que revela muito sobre a natureza humana emerge daí. Quando fazemos avaliações de satisfação através de sinais cerebrais, frequentemente usamos uma métrica chamada assimetria inter-hemisférica, numa faixa de frequência do EEG (o aparelho usado para fazer análise da qualidade do sono ou diagnóstico de epilepsia) ou através de ressonância magnética funcional. Em geral, maior ativação à direita significa menor satisfação. Quer dizer, quando ativamos mais áreas emocionais, sentimos menos prazer e não mais prazer, como muitos tendem a assumir.

Tal fenômeno reflete o fato de que a capacidade de reagir a eventos negativos é mais decisiva para a sobrevivência do que a capacidade de reagir a eventos positivos. Pelo mesmo princípio, é importante continuar reagindo às coisas negativas até que desapareçam, ao contrário do que se dá em relação às coisas positivas.

Kahneman e Tversky exploraram este fenômeno de maneira fantástica na teoria prospectiva, dos anos 1970, a qual levou o primeiro a ganhar o prêmio Nobel de Economia, em 2002. Na essência da teoria está a ideia de que, conforme vamos acumulando ganhos, deixamos de nos sensibilizar pelos mesmos, o que não acontece com as perdas, que nunca deixam de nos causar desprazer, em função da propriedade evolucionária descrita acima.

Não seria exagero considerar este como um dos mais importantes princípios psicológicos descritos no século XX. Entre diversas outras coisas, explica porque bilionários não são necessariamente pessoas radiantes: em geral, o enriquecimento deixou de acrescentar satisfação relevante anos antes de chegarem ao estágio atual de riqueza, ao passo que as perdas permaneceram dolorosas, por mais que praticamente irrelevantes.

A aplicação à lógica dos influenciadores é clara. A evitação do sofrimento pelo encolhimento da base de seguidores ou impacto das publicações tende a contar bem mais do que as tentativas de experimentar novamente o prazer obtido ao se atingir determinado patamar ou ao se compartilhar verdades íntimas com quem se tem uma relação que independe do meio. O combustível motivacional para se relacionar, enfim, tende a ser mais o medo do que o prazer. As consequências negativas são de duas ordens: a hipótese de perder a base constituída funciona como uma espécie de dependência, inibindo formas alternativas de relacionamento e ocupação, o que limita as oportunidades dos mais jovens; e ela reforça a disposição das pessoas psicologicamente mais frágeis para falar e fazer o que for necessário para se manterem no jogo.

 

A síndrome do impostor

Em artigo publicado no Medium, o famoso professor de neurologia de Stanford, Robert Sapolsky, traça um paralelo entre a síndrome de Capras e as experiências em redes sociais (https://bit.ly/2McHOUj), onde "tornamo-nos crescentemente vulneráveis a impostores (…) que nos contatam dizendo que nos conhecem, querem nos salvar de alguma ameaça de segurança e nos convidam a clicar em seus links. E que, provavelmente, não são exatamente quem dizem ser". A síndrome surge de um problema em áreas cerebrais ligadas ao reconhecimento e faz com que velhinhos sofrendo de demência avançada, entre outros, suspeitem que seus familiares ou cuidadores foram substituídos por impostores.

De acordo com Sapolsky, essa sensação de estar cercado por picaretas acaba aproximando as pessoas que de alguma forma conseguem encontrar um elo, nas redes sociais. Na minha opinião, faz muito sentido e explica porque o grande dilema dos influenciadores em plataformas como Facebook e Instagram é ser genérico o suficiente para agradar a gregos e troianos e genuíno ou "exclusivo" o suficiente para não ser visto como impostor.

O esforço para encontrar uma fórmula balanceada acaba criando uma relação imaginária sempre prestes a ruir com a audiência, que dita as regras do dia a dia para estes influenciadores, os quais vão se moldando ao personagem desenvolvido, até às beiras da despersonalização, especialmente porque a busca deste suposto caráter genuíno ou "exclusivo" tende a eliminar de vez qualquer possibilidade de se encontrar. Possivelmente, é a isso que Verity Johnson se refere quando diz que a ocupação leva, conforme citado acima, a uma "dessensibilização mental" e que difere, por exemplo, do exercício de papeis profissionais nos empregos tradicionais, onde inexiste essa demanda por suposta exclusividade existencial. Neste ponto, torna-se difícil fazer o caminho contrário, repensando a vida fora do enquadramento que fica após a tela de login, o que subtrai qualquer senso pregresso de autenticidade e, com ele, aspectos valiosos da autoestima e da personalidade.

 

Considerações finais: de quem é a culpa afinal?

Há pelo menos três mecanismos psicológicos poderosos contribuindo para que as pessoas mais vulneráveis simultaneamente sofram e entrem em um vale tudo existencial, que é ruim para o ecossistema das mídias sociais, sob as lógicas de incentivos desenhadas.

Isso porém não abole a responsabilidade de quem age desta maneira, nem tão pouco exclui o fato de que um enorme contingente atua de caso pensado, beneficiando-se da camuflagem propiciada pelos ingênuos. É por meio desta perspectiva que novos modelos de compartilhamento e interação social devem ser pensados e desenvolvidos.

Sobre o Autor

Álvaro Machado Dias é neurocientista cognitivo, professor livre-docente da Universidade Federal de São Paulo, diretor do Centro de Estudos Avançados em Tomadas de Decisão, editor associado da revista científica Frontiers in Neuroscience, membro da Behavioral & Brain Sciences (Cambridge) e do MIT Tech Review Global Panel. Seus interesses intelectuais envolvem tomada de decisões de um ponto de vista cerebral, efeitos das novas tecnologias na compreensão do mundo, inteligência artificial, blockchain e o futuro da medicina. Contato: alvaromd@wemind.com.br

Sobre o Blog

Este blog trata de transformações de mentalidades, processos decisórios e formas de relacionamento humano, ditadas pela tecnologia. A ideia é discorrer sobre tendências que ainda não se popularizaram, mas que dão mostras de estarem neste caminho, com a intenção de revelar o que têm de mais esquisito, notável ou simplesmente interessante, de maneira acessível e contextualizada.