Profusão de aplicativos dificulta a vida dos idosos na quarentena
Com Renato Meirelles, CEO do Instituto Locomotiva.
Vamos começar por algo inédito. E relevante por si só.
Desde que a pandemia de COVID-19 aterrissou no Brasil, o Instituto Locomotiva conduziu um conjunto sistemático de pesquisas sobre os impactos da doença na vida dos brasileiros.
Uma de nossas pesquisas, conduzida em parceria com a DOTZ, envolveu 5872 pessoas maiores de 18 anos e teve como objetivo primário mapear o comportamento dos brasileiros frente à necessidade de se isolar espacialmente e ficar em casa.
Na fase de tratamento estatístico, categorizamos os respondentes em adultos saudáveis, adultos de risco (portadores de doenças que aumentam as chances de morrer de COVID-19), idosos saudáveis e idosos de risco. Idosos de risco seguem o critério relativo à presença de doenças pré-existentes, ainda que saibamos, do ponto de vista clínico, que todos os idosos são de risco.
Eis alguns dos resultados que encontramos, que muito nos surpreenderam e que compartilhamos em primeira mão com vocês:
O quanto você concorda com a seguinte frase: nos últimos sete dias eu fiquei em casa.
Adulto 69,78%
Adulto Grupo de Risco 68,00%
Idoso 55,78%
Idoso Grupo de Risco 80,11%
O quanto você concorda com a seguinte frase: nos últimos sete dias eu não participei de eventos sociais.
Adulto 76,67%
Adulto Grupo de Risco 72,67
Idoso 63.78%
Idoso Grupo de Risco 77,78%
Em média, por quantas horas você permaneceu fora de casa quando saiu nesses últimos sete dias?
Adulto: 3 horas e 32 minutos
Adulto Grupo de Risco: 3 horas e 58 minutos
Idoso: 3 horas e 20 minutos
Idoso: Grupo de Risco 2 horas e 13 minutos
Nos últimos sete dias, em quantos você saiu de casa?
Adulto 2.45
Adulto Grupo de Risco 2.43
Idoso 2.70
Idoso Grupo de Risco 1.99
Conforme é possível notar, os idosos saudáveis saíram mais dias à rua do que os adultos saudáveis e participaram de mais eventos sociais. Por outro lado, suas saídas foram um pouco mais curtas do que as dos adultos, o que pode estar relacionado ao fato destes últimos estarem, prioritariamente, saindo para trabalhar.
De uma forma ou de outra, a grande questão é que as ruas estão – ou estavam durante o período em que as perguntas foram respondidas – com muito mais idosos do que seria de se imaginar se estivéssemos tratando de "agentes racionais".
O objetivo deste artigo é ajudar a entender estes resultados e sua relação com a tecnologia.
Por que as pessoas – e os idosos em particular – não estão se cuidando mais?
As razões pelas quais as pessoas burlam recomendações que podem salvar suas vidas são várias. Aqui na Locomotiva estamos começando a entender isso para além de teorias e especulações, uma vez que fizemos pesquisas subsequentes igualmente amplas para obter tais respostas.
Há, de qualquer maneira, uma estrutura geral que pode ser aplicada:
Em primeiro lugar, impõem-se as urgências de quem é forçado a sair de casa para não passar fome, sobretudo nas favelas, além de médicos, enfermeiros e outros profissionais considerados essenciais neste momento.
Em segundo lugar, impõe-se o peso das determinações institucionais e da lógica de grupo que lhe confere legitimidade moral. Se estas determinações são homogêneas, inclinações consensuais tendem a emergir e mesmo aqueles que discordam tendem a segui-las. Já se há conflitos de agência, como é o caso no Brasil, a moral de grupo é enfraquecida e uma brecha se abre para quem prefere se ater apenas àquilo que lhe é conveniente.
Depois vêm as questões mais individuais, solipsistas. Otimismo, autoengano, miopia sobre o futuro, assim como ansiedade, tendências obsessivas e o par introversão/extroversão impactam o apetite ao risco de cada um e, consequentemente, o grau de exposição.
Uma das questões individuais que não pode ser subestimada é da capacidade substitutiva de cada um. Quando somos alijados de algo que nos é importante – como o contato presencial com nossos parentes e amigos – tendemos a procurar formas de compensar isso e preservar nossa satisfação com a vida. Uma das formas mais elementares é o suprimento virtual de nossas necessidades práticas, outra é a virtualização relacional.
É possível especular que os idosos da nossa amostra estão sob o signo do ruído institucional – como estão os brasileiros em geral – mas não seria sensato atribuir o padrão observado apenas a isso, uma vez que os idosos de maior risco são os sujeitos que menos se expõem. A nossa hipótese é que dificuldades substitutivas tornam o isolamento social mais sofrido, estimulando os mais saudáveis a saírem às ruas.
As dificuldades substitutivas dos idosos podem ser divididas em blocos
Se há uma característica tipicamente humana, esta é a tendência a fundir aspectos diversos da experiência em realidades fenomenológicas aparentemente irredutíveis. Isso, contudo, não nos impede de tentar organizá-las para melhor as compreender.
No caso das dificuldades tecnológicas que dificultam a quarentena dos idosos, um bloco combina aspectos econômicos e culturais gerais: na média, idosos têm renda menor, acesso mais limitado à internet, aparelhos celulares de má qualidade, menos desenvoltura para realizar tarefas digitalmente e uma relação com o mundo baseada em práticas fundamentalmente analógicas.
Em seguida, vêm as dificuldades relacionais. Conforme a vida avança, as relações sociais tendem a diminuir numericamente e a se concentrar nos amigos mais próximos e na família, cuja disponibilidade passa a ser muito mais determinante no combate à solidão, do que ao longo das fases mais produtivas da vida. Se estes familiares não se mostram muito disponíveis para interagir digitalmente com o idoso, este tende a se sentir mais solitário, o que novamente o puxa para a rua.
Finalmente, vêm as dificuldades específicas no trato das tecnologias digitais. Ainda que a completa indisposição para se conectar esteja em franco declínio entre os idosos brasileiros, fato é que a grande maioria acolhe as novas tecnologias de maneira bastante limitada, sob uma lógica que chamamos de "passividade tecnológica".
Estas são pessoas que respondem positivamente quando guiadas e estimuladas, ao mesmo tempo em que não se sentem capazes de protagonizar iniciativas digitais. Por exemplo, se a família marca uma videoconferência e manda um link, o sujeito clica e participa mas, nem por isso, consegue organizar seus próprios encontros virtuais.
No nosso ponto de vista, a passividade tecnológica bloqueia a substituição compensatória no âmbito das relações entre pares, estimulando o idoso a sair de casa.
Apesar de aparecer por último em nossa lista, tal fator não deve ser desprezado. Tanto pelo contrário, como isso tudo interage e se reforça, acaba tendo impacto muito maior no comportamento do que pode parecer à primeira vista.
Nas seções seguintes, apresentamos duas características das tecnologias digitais dominantes no Brasil, que contribuem para esta situação deletéria para os idosos.
Lado A: interoperabilidade
Quando o telefone surgiu, quem possuía o revolucionário aparelho não podia sair ligando para qualquer um que também o tivesse; muito pelo contrário, os ramais eram separados. Foram necessárias décadas até que estivessem conectados.
Hoje em dia, ligamos para telefones celulares e fixos, sem nos atermos à importância desta inovação para a vida contemporânea. No mundo da telecomunicação existe interoperabilidade.
A mesma coisa se aplica ao e-mail, que hoje em dia é agnóstico em relação ao provedor, ou seja, que permite que eu mande uma mensagem do meu @usp para o seu @uol, sem me preocupar com a chance dele se perder no caminho.
Se é assim, porque é que não posso mandar uma mensagem do meu WhatsApp para o seu Facebook Messenger que são da mesma empresa; ou, ainda, porque não posso te chamar do Skype para falar com você, que só aprendeu a usar o Zoom?
O que, de tão extraordinário, separa a possibilidade de dois provedores de e-mail se comunicarem, da possibilidade de dois serviços de webconferência ou de mensagens pela internet fazerem o mesmo?
Quer a verdade? Nada, ou melhor, nada remotamente alinhado aos interesses da sociedade. Tanto é que assim que o Facebook já declarou que vai integrar o Messenger ao WhatsApp e o Skype permite a inicialização de uma conversa no Zoom de dentro de sua aplicação – desde que você esteja usando a versão paga ou "for Business" do produto da Microsoft.
A interoperabilidade corporativa é um problema conhecido, que vem sendo tratado com atenção crescente pelas gigantes da comunicação digital, bem como por algumas startups, como a pexip, que oferece o que se convencionou chamar de Integration as a Service, para facilitar a vida dos executivos e suas equipes, nessa Babel da comunicação digital.
O grande porém é que quem mais sofre com problemas de operabilidade não consome as versões pagas dos aplicativos de comunicação digital, nem pode pagar por um serviço que junte tudo isso e lhe permita centralizar seu conhecimento e foco digital.
Seria ingênuo assumir que as empresas de tecnologia vão se mobilizar espontaneamente para resolver tal problema, uma vez que a resolução tende a ir de encontro ao sonho do monopólio próprio.
É bem mais cômodo investir para que as dificuldades dos usuários mais velhos sirvam de catalizador na formação de consenso em torno da solução que disponibilizam. É justamente por este ângulo que se pode entender o movimento para liberar webconferências de até 50 participantes no WhatsApp, ao invés de agir mais diretamente para facilitar a vida de todo mundo.
Lado B: integrações
Se a interoperabilidade é o Lado A da passividade tecnológica, a ausência de integrações entre soluções digitais complementares é o Lado B.
Em linhas gerais, falta de interoperabilidade e ausência de integrações entre soluções digitais complementares criam problemas semelhantes, limitando a desenvoltura digital de idosos e outros, que têm dificuldade para baixar um sem-fim de aplicativos, preencher cadastros com confirmação do e-mail, aprender suas respectivas lógicas de funcionamento e assim por diante.
O grande diferencial está na maneira como o mercado vem tratando estas questões. Enquanto a interoperabilidade é carta fora do baralho para quem dita as regras do jogo, a solução para o problema das integrações subsidia alguma das maiores iniciativas digitais da nossa era. Neste caso, o exemplo mais bem sucedido é o chinês WeChat, que personifica o conceito de super-app, isto é, de plataforma onde as outras soluções podem se integrar com facilidade, evitando o périplo descrito acima.
Por meio dele, é possível mandar mensagens, fazer ligações dentro e fora do país, transferir dinheiro, pedir comida, jogar e assim por diante.
É bom para os mais velhos, mas péssimo para a sociedade como um todo.
Isto porque o WeChat – e os outros super-apps, como o Alipay (China) e o Go-Jek (Indonésia) – tratam as aplicações abrigadas sob seu guarda-chuva como coadjuvantes que podem ser removidos, de acordo com seus interesses. Definitivamente, não é o que Rappi ou Ifood imaginam para os seus negócios, nem aquilo que melhor pode servir a nossa população.
Assim, na prática, o problema se encontra tão órfão de soluções socialmente adequadas quanto o da interoperabilidade.
Quem sabe esta época de mudanças tão dolorosas pode ajudar a mudar este cenário.
Considerações finais
Internet ruim, celulares velhos, hardwares e softwares com usabilidade concebida para o público mais novo, concepção de mundo alheia à lógica das tecnologias digitais e muito mais – assim vem sendo a experiência dos mais velhos, que a necessidade imperiosa de ficar em casa agrava.
O ponto central deste artigo é que devemos adicionar a esta lista dois fatores muito pouco discutidos – interoperabilidade e integrações – que contribuem significativamente para a passividade tecnológica, que caracteriza a relação da maioria dos idosos com a tecnologia.
Não é fácil solucionar os desafios que impõem sem cair em arapucas maiores – monopólios, regras que podem limitar a inovação e externalidades de todos os tipos. Ainda assim, é importante que se desenvolva uma agenda de debates em torno destes pontos e que as empresas de tecnologia incorporem de uma vez por todas o compromisso com a autonomia digital de quem fica em casa.
Nunca na história isso foi tão importante.
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