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Álvaro Machado Dias

Não precisa inventar: retomada passa pelas tecnologias que já existem

Álvaro Machado Dias

31/05/2020 04h00

Crédito: Rawpixel.com/Freepik

Se existe um consenso intelectual derivado da pandemia e das respostas necessárias para reduzir seus danos é o de que as coisas não voltarão a ser como antes.

Mesmo que desejemos que retornem, os hábitos serão outros, pelo simples fato de que as soluções encontradas para enfrentar a crise não desaparecerão de nossa memória.

Esta é uma visão otimista, é claro, que pressupõe que a necessidade de superação nos ajudará a evoluir. No outro extremo está a ideia de que vacinas e terapias eficazes tardarão a chegar às mãos do povo brasileiro e, neste ínterim, os desafios afetivos e socioeconômicos acabarão por sugar muitos de nós para o fundo do poço.

As diversas versões do famoso "novo normal" partem de prerrogativas como estas para traçar panoramas globais, do ponto de vista das famílias e das organizações. O grande porém é que peculiaridades locais têm grande importância na futurologia.

É tentador dizer que as particularidades brasileiras são tantas e tão fortes que chegam a se sobrepor aos fatores globais. Não sei se é o caso, mas é fato que abundam, estão infladas e não apresentam indicativos de arrefecimento. O exotismo nos define.

Este artigo procura discutir alguns aspectos do novo normal da área de tecnologia, com foco na produção de software, startups e o que vem junto. O propósito é lançar luz sobre três tendências que devem se fortalecer localmente, com a retomada gradual da atividade econômica e que vão na contramão de muito do que ando lendo por aí. Para tanto, pautei-me por conversas com líderes do setor, dados originais de pesquisa e a minha própria experiência como sócio de um escritório de inovação, que já possui quase uma década.

Curva da retomada da "cena da tecnologia"

Comecemos pelo fator mais importante, sensível e imponderável: a retomada.

Ninguém sabe ao certo o que vai acontecer nos próximos meses, em relação ao curso da epidemia, do que segue que ninguém tem ideia de quando e como a econômica brasileira irá reagir. Dito isto, tanto as projeções da Universidade de Singapura quanto as da Universidade Johns Hopkins (dois importantes centros de pensamento em COVID-19) apontam que, em termos epidemiológicos, o mais provável é que a situação local apenas se estabilize em torno do fim de dezembro.

A estabilização apontada não pode ser confundida com erradicação do COVID-19 (ainda que empresas como a Pfizer estejam falando na possibilidade de lançamento de uma vacina em outubro deste ano, conforme você pode conferir aqui: https://cnb.cx/3dmlwJY). O esperado para este momento é uma relevante redução nos casos observados, que dependerá de medidas de afastamento social para se manter, até que finalmente uma vacina seja disponibilizada em larga escala no país. Vale a pena ler a bela reportagem do UOL sobre estes estudos.

Tão pouco seria o caso de assumir que a atividade econômica nacional como um todo permanecerá estagnada nos níveis atuais – não se desespere – o foco aqui é tecnologia. O ponto é que o ecossistema em que esta coabita é bastante dependente dos fundos, os quais estão dando indicativos de cautela prolongada ao redor do mundo.

Tendências do mercado de tecnologia brasileiro

A cena de tecnologia brasileira é formada por gente que trabalha no mundo corporativo, pequenos e médios empresários-desenvolvedores à moda do Vale do Silício, profissionais independentes que circulam com diferentes chapéus e muitas vezes ganham a vida com algo diverso e pesquisadores que programam em tempo parcial. Muitas dessas pessoas se encontram em meetups, hackerspaces, espaços dedicados em empresas (como o Google), eventos específicos (como a bsides), fóruns dedicados a linguagens diversas, grupos no Telegram e, de maneira indireta, no processo de garimpagem de soluções para problemas técnicos, no stack overflow e outros.

Há três maneiras essenciais de se manter atuante neste mercado: criar uma empresa com um produto rentável; trabalhar numa empresa, de preferência bem estabelecida; não ter no desenvolvimento tecnológico a fonte principal de renda e ir combinando hobby com oportunidade. Meu foco recai sobre a primeira.

Do ponto de vista do capital internacional e dos gigantes que se estabeleceram de maneira schumpteriana, empresas de Biotech, webconferencing (como o Hangout do Google, que chegou a ter crescimento diário de 60% em março, e Zoom, que saltou de 10 milhões para 220 milhões de usuários, entre dezembro de 2019 e março deste ano), conteúdo digital (como a Netflix, que adquiriu mais de 15 milhões de novos clientes neste ano) e entrega de comida (como a Rappi, cuja operação brasileira cresceu mais de 300% neste ano) estão valendo significativamente mais do que antes da pandemia eclodir. Tudo sugere que essa vantagem competitiva servirá de mola propulsora para que consolidem tal relevância, ao longo dos próximos meses.

Por exemplo, hoje a Zoom vale mais do que as sete mais valiosas empresas aéreas do mundo combinadas. Em 15 de maio, a Zoom estava valendo U$48.8 bi, enquanto a Uber estava valendo US$ 56,8 bilhões – uma aproximação surpreendente, que pode impulsionar a expansão da empresa em diversas direções colaterais, na linha do próprio Uber, que foi de "viagens compartilhadas" para "empresa de mobilidade".

O Brasil é menos exuberante quando o assunto é inovação radical – e assim deverá se manter, em função do comportamento refratário dos fundos de Venture Capital – mas é bastante rápido quando o assunto é seguir o cheiro do dinheiro. Apenas em março, o nosso comércio eletrônico assistiu a um crescimento de 32,6% no número de pedidos, o que se traduziu em faturamento (corrigido) 26,7% maior, conforme levantamento feito pela Compre&Confie, em parceria com a Associação Brasileira de Comércio Eletrônico. As vendas digitais de produtos de saúde cresceram 111%, enquanto as de perfumaria cresceram 83% e as de supermercados cresceram 80%. Estes números estão relacionados a esforços de transformação digital, que muitas das empresas destes setores já estão fazendo, apesar da falta de caixa.

As vendas online de alguns produtos de nicho, como aparelhos para ginástica em casa, dispararam ainda mais nestes últimos meses (mais de 1000% na Centauro, por exemplo). Outro destaque vai para os marketplaces de eletroeletrônicos e diversos (Americanas, Magazine Luiza e outros), que se instalaram em definitivo no cotidiano da classe média e que, por isso, tornaram-se ainda mais estratégicos. Esse aumento não significa que todas essas empresas estejam faturando mais do que antes da pandemia, é importante notar. De qualquer modo, as que tiveram quedas de faturando e valor de mercado, certamente estariam muito pior se não fossem suas operações digitais bem estruturadas. Em paralelo, há casos como o da Magalu, cujo valor de mercado aumentou significativamente, ultrapassando o do Banco do Brasil, entre outros titãs, em função do crescimento do seu marketplace que foi superior a 70%, durante este ano.

Ainda que sonhemos com magníficas invenções, o mais realista é que a recuperação do setor, no Brasil, seja dominada pela proliferação de contratações e negócios voltados à transformação das dinâmicas de vendas de quem não conseguiu se antecipar à crise ou não está com dinheiro suficiente para fazê-lo agora. Estes retardatários deverão impulsionar a demanda por marketplaces, sistemas de pagamento, CRM, ERPs online, segurança, logística e afins, na expectativa de reverter as perdas do período atual. Em paralelo, deverão fortalecer a expansão e o amadurecimento do marketing digital, que ainda não atingiu a plenitude por aqui.

Outra área tecnológica que deve ganhar bastante tração é a do ensino remoto, por meio de plataformas de LMS (do tipo Moodle e seu primo corporativo, o Totara). Isto porque os pedidos que chegam ao mercado costumam envolver muitas customizações, as quais os grandes fornecedores internacionais têm dificuldade para atender sem subir muito o preço. Não me surpreenderei se o próximo unicórnio nacional vier deste segmento.

Compartilhando princípios tecnológicos essenciais das plataformas de ensino modernas – escalabilidade, aprendizado de máquina e responsividade – diversas plataformas de serviços devem surgir ou se firmar ao longo do ano que vem. De pré-triagem médica à distância (que só não decolou antes por encrencas regulatórias), a marketplaces de profissionais autômos/freelancers, a corrosão do emprego formal, aliada às inseguranças sanitárias dos consumidores, deve impulsionar a concorrência em diversos segmentos de relacionamento digital. É isso o que muita gente que investe na área vêm falando, com propriedade.

Internacionalização das oportunidades

Para o mercado internacional, os salários pagos, no Brasil, para os especialistas da área de tecnologia, nunca foram muito altos, mas sempre estiveram longe dos patamares obscenos encontrados na Índia e em outros países onde as pessoas falam inglês fluentemente. Isto explica porque, tradicionalmente, as multinacionais direcionam pouco o seu outsourcing de tecnologia para cá.

Acontece que esta perspectiva mudou bastante nestes últimos meses, conforme o real foi se desvalorizando frente ao dólar e passou a ser conhecido como moeda tóxica. Vale notar que nossa moeda apresentou a pior performance do mundo entre janeiro e abril deste ano.

É verdade que a recuperação econômica que serve de pano de fundo para as presentes digressões é consonante com a valorização do real; porém, como a conjuntura política sugere agravamento da instabilidade, não me parece sensato apostar contra o dólar. Tal linha de raciocínio é coerente com a dos bancos internacionais, como a UBS, que em seu cenário mais pessimista prevê a moeda americana a R$7,35, no fim 2021 (eu não acho que será o caso, mas tão pouco espero uma recuperação relevante do real).

A conclusão que segue é que, proporcionalmente, deverá haver mais projetos de tecnologia voltados ao mercado internacional, além de M&As de empresas de tecnologia brasileiras com escritórios de empresas gringas – não é que estes serão muitos (nacionais e internacionais seguirão achatados), mas existirão em número suficiente para que se possa falar em tendência da Fase I do tal novo normal e trarão como um de seus efeitos colaterais o reforçamento da percepção de que o inglês é fundamental para quem trabalha nesta área.

Na mesma linha, uma das consequência da consolidação do trabalho remoto nos Estados Unidos, Europa e Ásia é a proliferação das equipes descentralizadas de alto rendimento, com profissionais da área de tecnologia espalhados por diversos países. O Brasil se destaca bastante nas áreas mais criativas da tecnologia (e.g., pós-produção, 3D, frontend), longamente nutridas pelas agências de publicidade, produtoras, agências de design e afins. Meu palpite é que alguns destes talentos acabarão contratados para posições estratégicas por empresas americanas e europeias, complementando o quadro criado pelo outsourcing mais generalista.

Espaços físicos e home office permanente

O New York Times de 19 de maio publicou um excelente artigo sobre o movimento que empresas como Twitter vêm fazendo para tornar o home office permanente. Mais recentemente (29/05), a EXAME noticiou os resultados de uma pesquisa que a empresa de serviços imobiliários Cushman & Wakefield encomendou sobre tendências do universo corporativo, para a retomada. A amostra foi composta por executivos de multinacionais. De acordo com 59% dos que responderam, há mais pontos positivos do que negativos no home office e cerca de 73% das empresas (no caso, multinacionais atuando no Brasil) pretendem manter a prática, em algum nível (para saber mais: https://bit.ly/2MfAkhm).

De fato, duas entidades centrais da cena tecnológica não têm data para readquirir seu prestígio: coworking e elevador-gigante-levando-à-grande-sala-apinhada. Mas, será que isso – e também aquilo que as pessoas estão falando no calor do momento – é suficiente para assumir que o home office permanente vai ser tornar tendência dominante? Acredito que não, ou melhor, não tanto quanto vem sendo noticiado.

O coworking é o símbolo mais máximo da economia compartilhada no trabalho e, muito em função dos investimentos em marketing do WeWork, caiu na boca do povo. Porém, quando olhamos os números, o quadro se mostra menos contagiante, especialmente fora da cidade de São Paulo. Senso realizado em 2019 mostrou que haviam 1.497 coworkings no Brasil, sendo 388 na capital paulista. Não são tantos assim. A conclusão é que a redução no interesse por coworkings, em função do risco de contágio de COVID-19 (e seus efeitos psicológicos de longo prazo) não deverá afetar a cena de tecnologia de maneira muito relevante, exceto pelo fato de que muitas empresas deste ramo acabarão quebrando.

Caso mais sério é o dos prédios corporativos com seus elevadores para 19 pessoas, que desembocam em lajes para mais de 100 e que tendem a acomodar tanto os escritórios das multinacionais, quanto muitos dos menores. Muita gente vai preferir evitar subir nestas condições, o que será um problema para as empresas.

Porém, dois fatores entrarão no modelo mental dos agentes decisórios envolvidos nesta questão. O primeiro, mais importante, é que nosso estilo de fazer negócios é fortemente dependente da empatia, ao contrário do que se dá na matriz, que tanto tentamos copiar. Em função de uma tradição que combina personalização e descrença no poder dos contratos, é muito difícil fechar um projeto relevante no Brasil sem passar por uma espécie de teste do sofá platônico (um "namoro de ideias", com muito olhos nos olhos), que não pode ser adequadamente reproduzido de maneira virtual. Todo empresário um pouco mais rodado sabe disso – não sendo a área de tecnologia algum tipo de exceção.

O segundo fator é que o universo das empresas pequenas e médias – o grosso da cena da tecnologia – apresenta lacunas nada desprezíveis na gestão de pessoas e da informação. No Brasil, apenas as grandes empresas e os bancos têm gestão profissional a ponto de poderem migrar a operação para o ambiente remoto sem sofrerem muito com isso. Para todo o resto, faltam gestores treinados, dinheiro para comprar as licenças de software necessárias para colocar a totalidade da equipe on-board, meotodologias de acompanhamento remoto do processo produtivo (o que é crítico em tecnologia), além da vontade de tornar as interações mais impessoais e, portanto, chatas, em nome da produtividade. Hoje isso tudo encontra-se em segundo plano – até porque as coisas estão mais lentas – porém, estas lacunas deverão ocupar espaço mais central no debate, uma vez que o mercado se aqueça.

Isso tudo me leva a crer que o principal movimento será em sentido à combinação do home office parcial, que em boa parte dos casos deverá privilegiar as divisões menos críticas ao negócio, com a ocupação de espaços menores e mais ventilados, fora das áreas de maior verticalização das cidades. Tal hipótese é consonante a outro dado da pesquisa da Cushman & Wakefield: de acordo com cerca de 45% dos executivos, o espaço físico das empresas deve ser reduzido e esta redução deve ficar entre 10% e 30%. Este movimento deverá trazer à tona a jamais pacificada discussão sobre mudanças no zoneamento urbano, em São Paulo e outras capitais, para acomodar a mudança no perfil da demanda corporativa, o que é outra discussão, não menos importante.

Para fechar

Se existe um mote para todo exercício de futurologia é de que, ao fim e ao cabo, irá se mostrar ao menos parcialmente errado. Ciente disso, propus aqui alguns pontos de vista que vão na contramão de muita coisa que estão dizendo por aí, na expectativa de despertar um debate saudável. Caberá ao tempo dar o veredito sobre a relevância destas previsões.

Conforme argumento, a retomada não irá nos levar a inovar mais, no sentido radical, genuíno, mas a promover a disseminação de tecnologias já consolidadas, com foco na famosa transformação digital. O argumento é simples: ousar demanda capital de risco e este seguirá retraído por um bom tempo, ao passo que o atraso tecnológico, em sua esfera mais elementar, cobrará seu preço de maneira crescente, aquecendo a demanda pelo arroz com feijão da tecnologia.

Outro ponto, agora em relação à nossa capacidade de entrega tecnológica, é que seremos mais notados pelas empresas estrangeiras. De novo, a razão é prosaica: o real permanecerá desvalorizado por um bom tempo e isso direcionará o outsourcing operacional de tecnologia (que tende a crescer nos Estados Unidos e Europa), além de algumas contratações de alto nível, para cá.

Finalmente, acredito que o home office amplo e irrestrito não irá se tornar tendência dominante na área. Parece-me mais razoável considerar que vamos passar a nos espalhar por espaços mais arejados e menos cisudos, fora dos circuitos  manjados dos centros empresariais. Pela combinação de home office parcial e ocupação desses espaços vamos nos livrar de um monte de quinquilharias, como o relógio de ponto e o crachá. Eis aí uma coisa boa que a pandemia pode nos trazer.

Sobre o Autor

Álvaro Machado Dias é neurocientista cognitivo, professor livre-docente da Universidade Federal de São Paulo, diretor do Centro de Estudos Avançados em Tomadas de Decisão, editor associado da revista científica Frontiers in Neuroscience, membro da Behavioral & Brain Sciences (Cambridge) e do MIT Tech Review Global Panel. Seus interesses intelectuais envolvem tomada de decisões de um ponto de vista cerebral, efeitos das novas tecnologias na compreensão do mundo, inteligência artificial, blockchain e o futuro da medicina. Contato: alvaromd@wemind.com.br

Sobre o Blog

Este blog trata de transformações de mentalidades, processos decisórios e formas de relacionamento humano, ditadas pela tecnologia. A ideia é discorrer sobre tendências que ainda não se popularizaram, mas que dão mostras de estarem neste caminho, com a intenção de revelar o que têm de mais esquisito, notável ou simplesmente interessante, de maneira acessível e contextualizada.