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A garrafa d'água que pensou que era uma zebra

Álvaro Machado Dias

17/04/2019 23h48

Atire a primeira pedra quem nunca sentiu um asquinho básico por garrafas d'água. Minha primeira vez foi no pré. A garrafinha vermelha da lancheira não deixava passar: ontem rolou Nescau por aqui.

A segunda foi na Índia. As ruas de Varanasi entupidas, motocicletas queimando óleo na proporção de um acidente nuclear e um milhão de buzinas tocando ao mesmo tempo. Diz-se que Gandhi derrotou a Inglaterra após treinar seu pacifismo ali.

A rua longa e estreita leva aos ghats do Ganges. Correndo na multidão, uns caras com braços para o alto carregando o embutido indefectível da Sadia. No meio de tanta magreza lembrei-me do caso do obeso anoréxico que havia atendido. Por onde será que anda essa figura? Aqui é que não.

O rio chega a você muito antes de você chegar ao rio. Não se trata de provérbio, é fato mesmo. A cremação rola pesada e o tostado te busca no caminho. Turista que quer provar que é gente como a gente, enrola o sari na cintura, mete as canelas no rio e bebe da sua água. Trata-se de ato terapêutico, até porque ver isso enquanto se pensa no cólera aproxima o peregrino temeroso da compaixão universal.

Abnegado, este que à natureza teme invariavelmente assunta o homem santo sobre o pacote mais popular da região: barquinho de caixa de banana, garrafinha de água mineral e umas fotos com ele, o autêntico sadhu.

Aí é que rola o asco. E se por trás do plástico opaco, a água estiver apresuntada? Todo mundo sabe que a prática de selar garrafas com água batizada é endêmica na Índia, o que se dirá de uma beira de rio. Aliás, isso explica o estranho fato de todo alemão, sueco ou japonês carregar sua própria garrafinha de lancheira, tal como se fosse rolar uma aula da Tia Cotinha nos arrabaldes do sagrado.

Corta para Nova Iorque. Aproveita e pula uns vinte anos. O maior empreendimento imobiliário de todos os tempos é lançado, ao custo de US$ 25 bilhões. Hudson Yards, o bairro super-ultra-cool à beira do Hudson River, tomado de volta da máfia e agora oficialmente anticadavérico.

Até a sarjeta é orgânica e probiótica. Tem som, tem arte, certo flair de Dubai e os malditos patinetes coloridos. Entretanto, uma coisa denuncia que estamos numa nova era: garrafas de água reutilizáveis, com design de aplicativo materializado. Dizem que são feitas de Uru e por isso custam 50 dólares ou mais. Sua função principal é serem carregadas, tipo iPhone em época de lançamento.

Olhando para esse povo todo de garrafinha na mão não dá para evitar a constatação de que moderno mesmo seria ter umas zebras pastando e defecando nos jardins do Hudson Yards.

Zebras expressam perfeitamente o ethos da nossa era. Por milênios, elas nos intrigaram com suas faixas. Teorias foram erguidas e reputações foram destruídas até o mundo entrar em consenso de que não servem para nada, exceto para tirar uma do cavalo, mais ou menos como faz o pavão toda vez que vê um peru.

Ledo engano. Listras são estratégias evolucionárias ultrassofisticadas que servem para confundir os insetos que porventura possam querer atacar o equino do bem.

Isso mesmo, as listras não estão lá apenas para tirar uma e homenagear os presidiários do gibi, mas para serem olhadas bem de perto, cem olhos ao mesmo tempo.

Elas são o exercício de UX de algum Deus africano. Elas são as garrafas de água de US$ 50 do mundo natural. Tal como essas, mantêm aquele gostinho de Nescau intacto sob o líquido asséptico, por meio de seu invólucro supercool – bem ao contrário do seu concorrente mais escroto, o plástico, em cujo lombo o desprestígio vem a galope.

Só tem um problema nessa comparação. Como diz o leão, a bandida da zebra é muito importante. Agora, que raios de importância pode ter um penduricalho hídrico, num mundo em que água potável e bocados de formatura vegana cercam-nos por todos os lados?

Como explicar o fato da tropa de choque do mundo pós-Prestobarba ter se armado de um treco que saiu da lancheira para repor o suor nas aulas de spinning?

Como entender o sentido da vida para quem brada o falo metálico como se fosse uma versão hidropônica do Vale do Silício? Isso é mais ou menos como uma nova moda de mochilas com patins acoplados, que você pode usar quando ficar tonto de tanto ver passar os patinetes.

Diz-se que na tal nova economia ninguém precisa ter nada, exceto dinheiro no banco. Ninguém precisa de carro, casa ou comida que não sejam experiência. Não sendo você o backpack kid, carregar o que for é, por definição, um contrassenso. Mas eis que surgem essas garrafinhas feitas em Asgard e, pimba, como num passe de mágica torna-se importante beber água sem bactéria em Hudson Yards, Vila Madalena e Saint-Germain-des-Prés.

Há problemas sem solução e soluções sem problemas. Este talvez não se enquadre em nenhum dos dois tipos, mas leva a pensar que se é para investir no luxo aleatório, melhor seria importar umas zebras. Ao contrário das garrafinhas, não poluem o ambiente com dilemas, permanecendo pretas com listras brancas, ainda que a moda da vez recomende o contrário.

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Sobre o Autor

Álvaro Machado Dias é neurocientista cognitivo, professor livre-docente da Universidade Federal de São Paulo, diretor do Centro de Estudos Avançados em Tomadas de Decisão, editor associado da revista científica Frontiers in Neuroscience, membro da Behavioral & Brain Sciences (Cambridge) e do MIT Tech Review Global Panel. Seus interesses intelectuais envolvem tomada de decisões de um ponto de vista cerebral, efeitos das novas tecnologias na compreensão do mundo, inteligência artificial, blockchain e o futuro da medicina. Contato: alvaromd@wemind.com.br

Sobre o Blog

Este blog trata de transformações de mentalidades, processos decisórios e formas de relacionamento humano, ditadas pela tecnologia. A ideia é discorrer sobre tendências que ainda não se popularizaram, mas que dão mostras de estarem neste caminho, com a intenção de revelar o que têm de mais esquisito, notável ou simplesmente interessante, de maneira acessível e contextualizada.