Repensando as decisões II: Como tomamos decisões difíceis
Álvaro Machado Dias
05/11/2019 04h00
Crédito: Taha Ajmi/Unsplash
Como tomamos nossas decisões mais difíceis ou "existencialmente importantes"? Como fazemos quando esgotamos nossa capacidade de encontrar sentido, após semanas de esforço para definir analiticamente a melhor opção? Ao contrário do que diz o senso comum e a literatura científica dominante, é nesse momento de esgotamento da racionalidade que surge a intuição. Este ensaio é sobre isso.
I. Introdução: a supremacia da razão
Se existe uma coisa surpreendente em relação ao progresso acelerado é que nos permite ver com clareza que as grandes questões da vida em sociedade, assim como as principais correntes de entendimento, não mudam muito ao longo do tempo.
Numa das mais fortes catálises intelectuais da história ocidental, Descartes, Espinosa, Leibniz e outros contemporâneos da metade do século 17 deitaram as bases para uma das principais vertentes do nosso pensamento, o racionalismo.
Em um nível de simplificação análogo ao dizer que a física quântica é a física das coisas bem pequenininhas, estes filósofos se libertaram de parte relevante do fardo religioso típico do pensamento medieval e dissecaram o pensamento, especialmente o matemático, como forma elevada de conhecimento do mundo.
O famoso Cogito ergo sum (penso, logo existo) de Descartes é apenas uma das muitas expressões do predomínio do mental sobre a matéria corpórea e a realidade sensorial que dela emerge, a qual, por sua vez, chegaria à calçada da fama da modernidade através da pena de empiristas britânicos, como David Hume, quase cem anos depois.
O dualismo cartesiano, que antes foi platônico e entre os dois fez mais paradas do que ônibus intermunicipal, marcou a revolução cognitiva que tomou o ocidente próximo do final da Segunda Grande Guerra e que se estendeu por cerca de vinte anos, levando ao desenvolvimento da teoria da informação e dos modelos computacionais que utilizamos até hoje.
Próximo do início deste período em que escombros e arroubos de genialidade se confundiam a céu aberto, John von Neumann e Oskar Morgestern (1944) publicaram um dos mais importantes tratados sobre o pensamento que já tive a oportunidade de conhecer: Theory of games and economic behavior, que entre outras coisas atualizou as regras lógicas que dão suporte ao pensamento racional, à luz de experimentos em ciência da computação, que von Neumann realizava à época.
No mesmo embalo, a dupla atualizou também as condições de validade para o nosso paradigma decisório N.1, a teoria da utilidade esperada, cujos desenvolvimentos iniciais são da primeira metade do século 18, época em que o matemático holandês Daniel Bernoulli (que a internet diz que é russo) desenhou suas bases para resolver um paradoxo probabilístico.
Vale esclarecer que, hoje em dia, o mercado de ideias trabalha com dois conceitos de racionalidade, que não apenas evocam processos distintos, quanto frequentemente produzem desfechos inversos; enfim, uma nomenclatura carente de racionalização.
O primeiro tipo é adaptativo ou teleológico – chame como preferir, pois essa é a prática – e diz que a ação racional é aquela que mira a eficácia. O segundo tipo é computacional ou cognitivo e diz que a ação racional é aquela que emerge de transformações simbólicas, que obedecem a preceitos lógicos bem formalizados.
Se bater primeiro e perguntar depois funcionar para certas coisas, diremos de um sujeito que irrefletidamente dispara bordoadas até seu sangue parar de borbulhar que, no contexto em questão, é racional pela primeira abordagem e irracional pela segunda.
Sem muita discussão, von Neumann propôs uma reconciliação destas noções com sentidos existenciais diversos, sob a assunção de que a clareza e consistência de objetivos deve se alinhar à clareza e consistência de processos cerebrais dedicados à analise das opções e mapeamento da incerteza, na consolidação do processo decisório como manifestação de uma existência funcional.
II. A crise da razão
A demonstração do nosso formalismo racional, numa época em que engatávamos uma reação à guerra que mais fortemente revelou a bárbara irracionalidade que se esconde sob o manto da civilização, caiu bem e tornou von Neumann ainda mais famoso – tem gente que diz que ele é o maior injustiçado da história do Nobel.
Porém, cedo tivemos que ceder às evidências de que os axiomas da racionalidade são mais normativos do que descritivos. O culpado foi Maurice Allais, que em 1953 deu o pontapé inicial para a tradição de alinhavar situações em que não agimos de acordo com tais preceitos e, portanto, onde a teoria da utilidade esperada não funciona.
Antes mesmo da separação dos Beatles (1970), a matematização decisória que animava von Neumann já havia sido sobreposta pelo manto das exceções. Ficamos com as chamadas heurísticas decisórias, que são regrinhas com baixo grau de generalização, que às vezes produzem desfechos positivos e, às vezes, produzem o contrário. Assim nasceu o campo que hoje é chamado de economia comportamental.
Ao meu ver, a genialidade desse pessoal está fundamentalmente atrelada à inibição do impulso para criar teorias grandiosas, em prol do laborioso processo de alinhavar achados mais modestos. Não seria exagero dizer que os economistas comportamentais deram o tom para toda a ciência cognitiva, que hoje é regida pela supremacia da descrição sobre a teorização.
Muita gente fala que os grandes arquitetos da economia comportamental, Kahneman e Tversky, foram responsáveis pela consolidação da ideia de que não somos racionais em nossas decisões. Não é bem assim, conforme já ouvi do próprio Kahneman. Em nenhum momento é negada a ideia de que estas regrinhas de eficácia local foram fixadas em função de seu valor adaptativo; apenas é destacado o fato de que tais adaptações perderam parte de sua eficácia com as mudanças impostas pela cultura. Aliás, assumir o contrário seria um contrassenso, em face do conhecimento acumulado sobre os processos seletivos, em suas dimensões naturais e culturais.
Sob esta ótica é que devemos considerar a contribuição mais popular de Kahneman para a cultura ocidental, o modelo rápido e devagar, de compreensão da realidade e, em particular, das tomadas de decisão. Este diz que processamos informações em dois estágios, um mais automático e adaptado à geração de respostas rápidas (sistema 1) e outro mais lento e adaptado à redução da complexidade informacional (sistema 2).
A hipótese representa uma maneira de conciliar as heurísticas com as evidências de que, quando as pessoas têm tempo e são suficientemente instruídas, não agem de maneira tão irracional assim. Ela é inspirada na ideia de que as perdas de acoplamento dos automatismos decisórios, a partir do fim do pleistoceno (há cerca de 11.000 anos), induziram uma nova camada de adaptações, tanto mais frágeis e dependentes de esforço intencional, que são os processos racionais, em sua conotação cognitiva.
III. O tratamento das decisões difíceis
Conforme responde às ressalvas que surgiram à hegemonia do pensamento heurístico, o modelo dos dois sistemas faz um resgate involuntário do dualismo, que numa linguagem pós-moderna (em si, uma relíquia bizantina) gera uma "narrativa" de "supremacia do logos", onde o ponto de contato final com as opções decisórias se dá por meio da análise racional "clássica", baseada na representação mental das opções, processamento simbólico e atribuição de valor para as coisas assumidas como certas e para as assumidas como incertas.
Na grande maioria das situações, isso está correto: empilham-se as evidências de que fazemos avaliações implícitas sobre a importância de uma decisão e, conforme assumimos que o assunto em questão é mais relevante, investimos mais energia mental.
A mente, grosso modo, funciona como uma espécie de sistema econômico, que tenta otimizar investimentos energéticos, à luz da importância adquirida pelas diferentes representações, sob o farol da consciência.
Mas há uma importante insuficiência neste modelo, a qual se manifesta onde a racionalidade cognitiva se mostra mais determinante, que é na criação e seleção de opções para os nossos problemas decisórios mais difíceis.
Aqui, novamente, estamos em uma esfera delicada de sentidos, à exemplo do que ocorre em relação à racionalidade. Há duas definições para problema decisório difícil: uma mais cognitiva, que diz que se trata do problema cujas opções são de concepção complexa, ou subsistem em um mar de incertezas. E outra mais existencial, que diz que são os problemas associados aos desfechos mais importantes para nós e para aqueles com quem nos importamos mais profundamente. Em geral, elas andam juntas, mas nem sempre.
Como exemplos de diferenciação entre estas acepções colocam-se os problemas decisórios com grande potencial de impacto e opções fechadas do tipo "ficar ou partir". Exemplo: sigo nesse emprego ou peço demissão; permaneço no Brasil ou vou embora; faço essa operação de alto risco ou deixo as coisas como estão?
Nestes casos, não há muito o que inventar em termos do leque de possibilidades, mas certamente há muito o que se ponderar em termos das consequências de cada uma delas.
Problemas desta natureza não nascem difíceis; eles ascendem a esta categoria após semanas, ou mesmo meses, conforme somos forçados a assumir que a nossa habilidade de encontrar a confiança necessária para decidir não virá das tentativas de lhes espremer de maneira analítica, usando o que Kahneman e Tversky chamaram de Sistema 2.
A passagem do tempo é suficiente para mostrar que toda procrastinação é também uma decisão. Com consciência disso ou não, fato é que frequentemente superamos a indecisão aguda que este tipo de situação instala. Como isso é possível? O que ocorre nesses momentos de insuficiência cognitiva? Será que há algo a se iluminar, onde o túnel do Sistema 2 desemboca?
A minha maneira de tentar responder a isso se deu através da teoria da intuição derradeiramente decisória, conhecida como IDD. Segundo ela, a dicotomia entre sistema 1 e sistema 2 é apenas superficial. Em nível mais profundo, processamentos analíticos e processamentos de informação caracterizados pelo predomínio afetivo-sensorial são como os dois lados de um edredom sob o qual nos deitamos: ao mesmo tempo em que não podemos separá-los, passamos a vida em contato com um lado, observando aquilo que acontece no outro.
Ao mesmo tempo em que procuramos uma solução analítica para os nossos problemas decisórios mais profundos, pela composição de prós e contras, vamos alimentando uma forma alternativa de relacionamento com as hipóteses de futuro que prenunciam, a qual não inclui argumentos ou representações imagéticas, mas apenas experiências sensíveis, que sequer conseguimos comunicar para os outros diretamente.
Enquanto continuamos focados na busca de uma solução racional, permanecemos no impasse; porém, assim que largamos um pouco esse enfoque – o que em geral acontece mais por esgotamento do que por clareza de sua insuficiência – somos conduzidos a uma inversão no nosso foco atencional, em direção a estas realidades afetivas, e, voilà, vemos nascer uma intuição que nos inclina a uma das opções, tal como se alguma força misteriosa agisse por baixo dos panos – uma forma de simpatia, como diziam os antigos.
É irônico pensar que no ponto mais alto da racionalidade, agimos de maneira cabalmente intuitiva, mas é isso que uma série de evidências corrobora.
IV. Para fechar
Tentativas de reconciliar o longo inventário de rupturas da racionalidade cognitiva com o fato de que agimos de maneira mais cuidadosa e atenta do que inicialmente sugerido pelos economistas comportamentais, em diversas situações, levaram à proposta de um sistema em duas fases, uma mais afetivo-sensorial e outra mais analítica.
Esse resgate dualista teve imenso sucesso, tornando-se um cânone em funcionamento mental nas tomadas de decisão, dado que efetivamente explica um sem-fim de fenômenos, que permaneciam misteriosos.
Porém, não explica o que acontece nas nossas decisões mais difíceis, as quais são aquelas que nos confrontam com a insuficiência de nossas estratégias analíticas para que nos pacifiquemos internamente com qualquer uma das opções.
Para explicar isso, uma das poucas alternativas é a IDD, que desenvolvi no começo da década passada e que traz em seu seio a premissa contra-intuitiva de que as decisões mais críticas são sempre deliberadas de maneira intuitiva.
A sua base neurológica ancora-se no fato de que os processos analíticos são discretos, enquanto os processos afetivos são contínuos, permitindo que uma pequena diferença afetiva desempate o jogo – o que só acontece se o indivíduo abdicar de tentar encontrar o caminho da segurança através de argumentos racionais. Por mais paradoxal que isso possa parecer.
Sobre o Autor
Álvaro Machado Dias é neurocientista cognitivo, professor livre-docente da Universidade Federal de São Paulo, diretor do Centro de Estudos Avançados em Tomadas de Decisão, editor associado da revista científica Frontiers in Neuroscience, membro da Behavioral & Brain Sciences (Cambridge) e do MIT Tech Review Global Panel. Seus interesses intelectuais envolvem tomada de decisões de um ponto de vista cerebral, efeitos das novas tecnologias na compreensão do mundo, inteligência artificial, blockchain e o futuro da medicina. Contato: alvaromd@wemind.com.br
Sobre o Blog
Este blog trata de transformações de mentalidades, processos decisórios e formas de relacionamento humano, ditadas pela tecnologia. A ideia é discorrer sobre tendências que ainda não se popularizaram, mas que dão mostras de estarem neste caminho, com a intenção de revelar o que têm de mais esquisito, notável ou simplesmente interessante, de maneira acessível e contextualizada.