Crônicas de uma era: a feira da Lorena II
"Crônicas de uma Era" é uma série de crônicas e contos inspirados nas transformações psicossociais trazidas pela digitalização massiva, economia compartilhada e inteligência artificial. Hoje apresentamos a segunda parte de "A feira da Lorena". Se você ainda não leu a parte inicial, faça-o. E volte aqui para a continuação.
Passados dois meses, a notícia de que uma cigana clarividente oferecia seus serviços na feira da Lorena ultrapassava as fronteiras do quadrilátero e começava a atrair a atenção de quem tem decisão difícil para tomar – ou problema insolúvel para resolver – na cidade inteira.
Dona Ruth aprendera a utilizar o "ponto" (como chamava o microfone sub-auricular por onde recebia informações sobre os clientes), enquanto seu filho Otávio dedicava-se obstinadamente ao aumento da velocidade das consultas e quantidade de bases de dados disponíveis, a despeito do número massivo já adquirido na dark web.
Engana-se quem pensa que o sucesso satisfaz independentemente de sua origem. Tanto pelo contrário, muitas vezes ele é como a medalha que consagra a vergonha do atleta anabolizado e outros tantos personagens semelhantes, com exceção dos políticos, imunizados pela hipótese de existirem transgressões capazes de salvar o país.
Esta era a parte do mal estar que vinham debatendo nos últimos dias. Em outro departamento, Dona Ruth processava uma aflição incompreensível para o filho: será que essas coisas que cabem em tabelas dão conta do serviço? Ou será que seu destino é reduzir o futuro a tediosos desdobramentos do passado?
A sorte veio te ver, são R$ 90 e você nunca mais vai se esquecer – falou Dona Ruth para o cara formal, com ares de Zeca Urubu.
– Que sorte?
– A sorte de saber o seu destino.
– Mas se é o destino, qual a vantagem de saber?
– Não existe destino, caro advogado, só possibilidades. É como resultado de exame, às vezes é quase uma sentença, mas mesmo nestes casos tudo pode mudar. Nunca se sabe quem será o próximo atropelado, não é verdade? Hehehe.
– Nada como uma pessimista convicta para animar o meu dia. Como a senhora sabe que sou advogado?
– Seu terno…sua pasta.
– Ah, certo. Só advogado usa pasta, né?
– Todo homem rico tem uma pasta marrom que combina com o terno, mas é preciso ser também advogado para levar o kit passear aos domingos.
– Encantado. Meu nome é Joel.
O meu é Carmem – disse ela, com um sorriso maroto, enquanto recebia a ficha corrida do homem, em velocidade lancinante.
Risos de ambos, olhando para a placa escrito "Ruth".
– Carlos. Carlos Alberto de Oliveira.
– Querido, quer que eu leia a sua sorte?
– Eu não acredito nessas coisas.
– Não precisa acreditar. É só não ter medo. Para você, é dinheiro de pinga; digo, gorjeta.
E assim ela começou mais um atendimento.
Sócio do escritório Oliveira e Associados, muitos casos no JusBrasil, doutorado na USP, a ficha do homem dava para umas duas horas de conversa. Já a consulta, bom, esta seguia distante, com o cliente indiferente à suposta vidência da cigana e à narrativa de um futuro ainda mais resplandecente na profissão. Até que ela decidiu arriscar.
– Você conquistou muita coisa; fez fama e dinheiro, sempre querendo mais e mais; pois saiba que seu problema é esse. Tá vendo essa carta aqui? Esta é a torre, ela é uma das mais complexas do tarô, mas para você o sentido é um só: você deve se reestruturar. Por que você não relaxa e aproveita um pouco o que já conquistou?
– Eu não consigo, nem tenho tempo para isso. Você não percebe mesmo, né? Aliás, acho que já foi o bastante. Podemos encerrar por aqui. Meus parabéns, a senhora é realmente tão impressionante quanto dizem. Vou acertar e ir embora, ok?
Mãe, ele tem várias entradas no hospital Albert Einstein no último ano; acho que não está bem – disse Otávio.
– Eu sei que você tem pressa, a pressa de quem sofre, Carlos. Sofre por estar doente e, sobretudo, sofre pela sua família. Mas não se desespere. Você irá vencer, tudo o que você precisa é se reestruturar. É disso que estou falando.
O rosto do homem se iluminou como se jamais tivesse sido soturno: você acha?
– Saber mesmo eu não sei, ninguém sabe. Agora, eu sei que a sorte está a seu favor. É câncer, não é?
Sim. Um câncer pequenino que se espalhou por todos os lados – disse ele, com aquele tom quase infantil que alguns médicos adotam para dar notícia ruim.
Mãe, consegui acessar a ficha médica dele. Tudo que encontrei é ortopedia. Tá ouvindo? Ortopedia. Acho que ele quer te pregar uma peça.
Por que você está escondendo a doença da sua família – perguntou ela, ignorando completamente a dica do filho.
– Minha mulher tem uma depressão de anos. Um dos nossos filhos, o único que mora no Brasil, precisa muito de mim, deu para beber, não sai de casa.
Aí eu digo que estou tratando o joelho. Que, aliás, estou mesmo. Fiz uma baita cirurgia no começo do ano passado, mas nunca ficou bom – disse sorrindo.
Sem falar mais nada, Dona Ruth coloca a mão sobre a cabeça de Carlos e reza algo que ele não consegue decifrar.
– Meu filho, eu não tenho o poder de te curar, mas posso dizer o que você precisa fazer: vai para casa, junta a sua família e conta a verdade. Você passou a vida tentando ser o esteio de todo mundo, mas agora quem mais precisa de esteio é você. Vai com tudo, sem se preocupar com a fraqueza de ninguém. Depois, pega essa grana que você ganhou e aplica no melhor tratamento do mundo. Tem um ditado que diz que Deus gosta de ajudar quem leva a saúde a sério. Acredite nele. E vá em paz.
Uma lágrima escorria do rosto iluminado de Carlos, tal como se ainda fosse o coroinha de São Luiz do Paraitinga, que se divertia dando vozes às estátuas da igreja.
Obrigado, muito obrigado – disse, enquanto saía a passos largos, esquecendo-se de pagar.
Este dia Dona Ruth foi mais cedo para casa. Equipamento na mão, agradeceu demais ao filho pela parceria no projeto mirabolante e sugeriu que tentasse arrumar um emprego. O tempo da tecnologia como muleta e simulacro havia ficado para trás.
Perdeu a primeira parte da história? Leia aqui:
Crônicas de uma era: a feira da Lorena
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