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A ideologia da revolução cognitiva III: a era do Eu amplificado

Álvaro Machado Dias

23/01/2020 04h00

Lothar Dieterich/ Pixabay

A popularização da Web 2.0 foi acompanhada por uma proposta de relacionamento digital, que combinava desejo de conhecer pessoas e ideias diferentes, com desejo de compartilhar algo pessoal e potencialmente distinto. Com o tempo, esta segunda dimensão se impôs, dando o tom da segunda fase da Era Digital (2002-2020), que este ensaio discute.

No norte da Tanzânia existe um vale chamado Rift, cujas areias ferventes costumavam se esconder no leito de um rio. Neste vale foram encontrados os primeiros seixos de pedra talhados por nossos ancestrais, há mais ou menos 2,5 milhões de anos. Eles dão testemunho do quão arraigada é a tendência à amplificação das capacidades com que nascemos.

Esta amplificação ficou por mais de 99% de nossa história restrita à esfera da fisicalidade. Apenas recentemente, há cerca de 5.000 anos, é que aprendemos a também amplificar nosso potencial cognitivo por meio de ferramentas. Isto ocorreu primeiramente de maneira algorítmica – através do ábaco – e, 1.500 anos depois, de forma linguística, por meio da escrita. Desde então, a passagem do tempo é acompanhada pelo aumento da assimetria de importância da amplificação cognitiva sobre a motora. Em consonância com tal tendência – e muito antes da modernidade – a instrumentalização cognitiva se especializa, dando origem a campos tão variados quanto a ética, a poética, a retórica e as variadas ciências. Ela também passa a dar o tom do amadurecimento da criança em adulto, o que já na modernidade serpenteia sobre o complexo e, até hoje pouco compreendido, estágio adolescente.

Consolida-se assim o modelo de indivíduo que faz a interface entre o conhecimento acumulado e a sociedade, bem como também o modelo do gênio criativo, que entrega muito mais e de maneira mais disruptiva do que seus pares, tal como consagrado por Leonardo da Vinci.

Uma diferença fundamental entre a capacidade de alterar o mundo diretamente e a de formar entendimentos intermediários é que o progresso neste segundo plano empodera de maneira inalienável, posto que tem o cérebro como morada. Possuir ferramentas é bom, mas aprender a fabricá-las é muito melhor.

Assim, mirando-se em seus pais e tutores na parte formal e nas interações horizontais providas pelas brincadeiras, a criança é (ou deveria ser) estimulada a entrar em uma intensa jornada de amplificação cognitiva, que é moldada sobre o neurodesenvolvimento.

Em sociedades que favorecem o individualismo sobre o coletivismo – onde em geral se planta mais trigo do que arroz e a religião é monoteísta – este processo de amplificação cognitiva é acompanhado por noções acerca do papel do Eu, que fazem o indivíduo atingir a adolescência acreditando ter algo de valoroso ou especial. Tais noções estão na origem do impulso à individuação psicológica desta fase e representam o desfecho da formação infantil.

John Schnobrich/ Unsplash

Funcionalmente, a adolescência marca a passagem para uma fase de desenvolvimento neurológico mais lento, que torna propícia a consolidação de uma visão de mundo resultante destes anos todos de aprendizados, passados pelo filtro das inclinações inatas. Há, enfim, uma função pessoal e social na sensação de possuir algo digno de nota – um toque especial, uma visão exclusiva da realidade ou algo do gênero.

Forma-se assim o impulso para mudar o mundo de quem tem espinhas e a primeira ressaca, o que se traduz em apetite para amplificar as fronteiras de impacto do Eu.

Ao contrário do que supõe o senso comum, esta inclinação não é o que diferencia os adolescentes dos adultos; tanto pelo contrário, ela é a primeira fase da incorporação da ideia de "ser alguém no mundo", a qual traduz o princípio de expansão territorial do Eu, que caracteriza a psicologia adulta moldada pela lógica produtiva, conforme o pessoal da Escola de Frankfurt dizia.

Importante notar que esta inclinação a expandir os domínios do Eu deve conviver com o espírito de esponja já formado durante a infância; quer dizer, a vida mental adolescente depende de um raciocínio duplo para se equilibrar: se tenho alguma crença que julgo especial e ela não é consonante com a maneira como o mundo é, cabe a mim fazer algo para que venha a ser – raciocínio que amplia o impacto do Eu e antecipa o adulto. Em paralelo, de maneira receptiva, dado que pessoas que desconheço também são dotadas de peculiaridades notáveis, cabe a mim identificá-las e compartilhar de suas experiências, amplificando meu repertório – ou seja, transformando meu entendimento em função do que vem de fora, o que preserva o impulso que vem da infância.

O que se forma deste modo é um modelo de aproveitamento de nossa passagem por este planeta, eternizado por Ulisses, nosso grande adolescente, que deixa Ítaca para expandir as fronteiras em que suas crenças e experiências reverberam, ao mesmo tempo em que tacitamente se dispõe a superá-las, na troca direta com o desconhecido.

As biografias mais notáveis oscilam sobre o eixo do raciocínio que marca a vida adolescente, oras priorizando o aprendizado e a descoberta, tal como no caso de Marco Polo, oras priorizando a ampliação das fronteiras em que o Eu reverbera, tal como no caso de Alexandre, o Grande (356-323 a.C.) e demais conquistadores.

Acontece que o poder de atração deste último tipo tende a superar o da vivência da grande aventura, nas sociedades individualistas. Uma hipótese é que a ampliação do recall pessoal mitigue angústias da finitude, originadas da certeza da morte; outra, é que as recompensas sejam maiores e mais vistosas. Talvez estejamos falando de duas verdades historicamente datadas (uma do século XIX e outra do século XX), sendo a segunda mais bem apoiada em evidências.

Por uma razão ou por outra, fato é que a evolução da adolescência – um período tradicionalmente dividido em três subfases – é marcado por um investimento crescente de dentro para fora, na troca com a inclinação para apenas consumir informação e influência (de fora para dentro, portanto).

A radicalização deste predomínio, que é também um fechamento em torno de si mesmo, marca a cristalização psicológica de tantos adultos, que se convertem em versões miniaturizadas do conquistador arquetípico, tomando suas posses como extensões de si mesmos. É isso o que explica o desprezo dos adolescentes pelo status quo e não algum delírio qualquer.

Escolher a profissão em função do quanto paga, construir relacionamentos afetivos de longo prazo e não fazer aquilo que faz mal à saúde fazem parte de uma narrativa de maximização utilitária do Eu, que muitos adolescentes experimentam como aceleração da vida adulta e avaliam como covardia frente ao desconhecido.

Tal é o pano de fundo para o movimento ideológico que toma forma a partir dos primeiros anos do milênio, na esteira do declínio dos representantes típicos da ideologia californiana, assunto de meu último ensaio.

Gerd Altmann/ Pixabay

O Eu aventuroso e o Eu amplificado

Conforme vimos no ensaio anterior, entre 1975 e 1990, San Francisco e arredores serviram de berço para um movimento pós-hippie, de conotações tecnológicas e inclinação anarquista, que inspirou grande parte das tecnologias que utilizamos hoje em dia. Na década de 1990 este movimento se transformou por dentro, pelas mãos do grande capital, que o conduziu sorrindo ao crash do milênio (2000-2002).

O renascimento das empresas de tecnologia foi ancorado no surgimento da Web 2.0, que se destacou pela possibilidade de interações na mesma página, como é o caso para as trocas de mensagens em redes sociais. Este renascimento trouxe o pequeno inventor de garagem novamente à cena, ao mesmo tempo em que permitiu que algumas empresas sobrevivessem e se expandissem, como foi o caso da Amazon (1994) e do Ebay (1995).

A aventura financeira da década de 1990 deixou mais do que cinzas como legado. Em pouco tempo, as novas startups estavam fazendo rodadas de investimento e ocupando o noticiário como bolas da vez. Lições foram aprendidas e o mercado se profissionalizou espantosamente, na comparação com a década anterior.

Esta profissionalização traduziu-se em racionalismo financeiro e ceticismo em relação aos princípios que um dia nortearam a cena de San Francisco e arredores. Em contraste, o grande público foi convidado a participar e a dar contornos a um novo capítulo na digitalização da aldeia global, como falava McLuhan (em alusão à televisão, mas com sentido análogo à internet).

O que de mais relevante fruto deste movimento oferece é a promessa de cristalização da vida mental adolescente em toda a sua plenitude, por meio de interações em rede. O convite é para simultaneamente conhecer um monte de pessoas e estilos de vida novos, transformar-se por meio deles e retribuir de maneira análoga, expandindo as fronteiras de impacto do Eu, sem ter isso como fim em si mesmo.

Ou seja, a ideia não é a de meramente dominar territórios simbólicos de maneira imperialista (isso se chama Clout ou "influência"), como se tornou comum dizer. Tal é o que seus pais já faziam – ou tentavam fazer – e que os amesquinhava, conforme explicado na seção anterior. A novidade que pegou está na outra esfera, onde a grande ansiedade é a de ficar de fora do que importa, tal como a criança que não pode participar da brincadeira capaz de lhe amplificar de maneira sócio-cognitiva (isso se chama FOMO, de "feeling of missing out"), conforme a história do Facebook revela (este livro conta isto vividamente: "The Facebook Effect: The Inside Story of the Company That Is Connecting the World")

O indivíduo que emerge desta narrativa é um hub de influências. Tal como um modelo conceitual de adolescente saudável, caracteriza-se por um limiar rebaixado para a transformação e, do ponto de vista constitucional, tem uma personalidade onde predomina o traço conhecido como "abertura à experiência", sobre todos os outros (para entender um pouco isso, acesse aqui).

O pulo do gato desta história é que, conforme explicado, ao longo da progressão da adolescência, as recompensas para quem dá uma de Ulisses são inferiores às que chegam para quem dá uma de Alexandre.

Pois a evolução desta segunda fase de desenvolvimento da internet remonta a uma adolescência coletiva. Passada sua primeira fase (correspondente ao período que vai dos 10 aos 14 anos), a ordem psicológica forjada pelo projeto do Eu como hub de influências passa a servir de trampolim para aspirações cada vez mais pragmáticas, onde o FOMO é o de não estar aproveitando a democratização do acesso à aldeia global para se capitalizar.

Este sentimento ironicamente aproxima esta geração de representantes típicos da classe média ocidental de seus pais geracionais, yuppies e caretas, sob a lógica de que estão todos empenhados em uma missão imperialista, de aumento do Clout.

Como sair deste impasse? Como evitar se confundir com a mãe e o pai que se movem pelo mundo orientados pela ideia de promoção profissional e por isso são vistos como tão pouco inspiradores? Como manter algum laço com a idílica ideologia californiana, em sua pregação da tecnologia como afirmação da liberdade e negação do establishment? Resolver este impasse é o papel de uma das mais fundamentais dinâmicas ideológicas da nossa era: o selfie.

O selfie é a solução para que o sujeito empenhado na amplificação dos espaços de influência do Eu possa trabalhar em seu Clout, como se este fosse consequência de uma aventura genuína. É o flagrante da espontaneidade de um sujeito em transformação, despretensiosamente compartilhado.

Se selfies explicassem o mundo real, a ilha de Bali seria maior do que a China e Paris permaneceria a capital do ocidente. Se selfies permitissem entender correlações e causalidade, barriga de tanquinho prediria paz interior e biquinho contra o sol seria sinônimo de encontro consigo mesmo. Se selfies importassem como fotografia, celulares teriam o dobro de câmeras na frente do que atrás e não o contrário.

Não é nada disso, a gente sabe.

Lubos Houska/ Pixabay

Para fechar

Primeiramente na Califórnia e depois no resto do mundo, o advento da Web 2.0 foi acompanhado pela saída do estresse pós-traumático produzido pelo estouro da bolha do dotcom, queda das torres gêmeas e eventos sociais relacionados. Isto aconteceu de maneira rápida e eficiente, o que por sua vez deslocou o eixo ideológico mais vibrante dos criadores de tecnologia para os consumidores, convidados a viverem o arquétipo de Ulisses, que se lança rumo ao desconhecido e, por isso, expande as fronteiras de sua presença no mundo.

A proposta ecoou entre o público adolescente e pós-adolescente, dado que nesta fase da vida é particularmente vantajoso dosar impacto e aprendizado do desconhecido. Ainda mais amplamente, a sua apropriação se transformou seguindo os moldes em que evolui a adolescência: a assimetria de recompensas entre aprender e inspirar se impôs crescentemente, até o ponto em que a tendência dominante entre os jovens se tornou o impulsionamento puro e simples do Clout.

Esta passagem não foi livre de externalidades; muito pelo contrário, ela se escorou numa nova dinâmica de representação do Eu, que é o selfie, o qual serve fundamentalmente para tentar expandir os limites da influência pessoal, enquanto se diz o oposto. O álbum de figurinhas é o Instagram, que por esta razão se tornou a rede social mais ideológica do mundo.

No próximo ensaio irei explicar em primeira mão o funcionamento da lógica psicológica e social do selfie e seu papel nas transformações ideológicas dos últimos anos. Até lá.

Leia também:

A ideologia da revolução cognitiva I: os algoritmos por trás do mundo

A ideologia da revolução cognitiva II: a utopia californiana

 

 

 

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Sobre o Autor

Álvaro Machado Dias é neurocientista cognitivo, professor livre-docente da Universidade Federal de São Paulo, diretor do Centro de Estudos Avançados em Tomadas de Decisão, editor associado da revista científica Frontiers in Neuroscience, membro da Behavioral & Brain Sciences (Cambridge) e do MIT Tech Review Global Panel. Seus interesses intelectuais envolvem tomada de decisões de um ponto de vista cerebral, efeitos das novas tecnologias na compreensão do mundo, inteligência artificial, blockchain e o futuro da medicina. Contato: alvaromd@wemind.com.br

Sobre o Blog

Este blog trata de transformações de mentalidades, processos decisórios e formas de relacionamento humano, ditadas pela tecnologia. A ideia é discorrer sobre tendências que ainda não se popularizaram, mas que dão mostras de estarem neste caminho, com a intenção de revelar o que têm de mais esquisito, notável ou simplesmente interessante, de maneira acessível e contextualizada.