Polícia americana em crise é oportunidade para as tecnologias de vigilância
A história recente do racismo americano cruza e muitas vezes se confunde com a do progresso técnico e da transformação cultural acelerada, que marcaram o século XX, em um movimento que apenas repete o que foi verdade no Século XIX, quando até a parede que dá nome à bolsa de valores mais famosa do mundo (Wall Street) foi construída por escravos.
Nos anos 1970-1980, firmou-se a ideologia típica do empreendedorismo do Vale do Silício, hoje hegemônica no mundo. Vale ler a série de ensaios publicados pelo UOL sobre o tema. Décadas após o seu surgimento, é correto dizer que contribuiu para a inclusão digital universal, a qual democratizou o acesso aos meios de comunicação, ainda que tenha feito muito pouco em relação às disparidades salariais e decisórias determinadas por raça e gênero.
Esta narrativa mostra-se ainda menos radiante quando contada pelo ponto de vista de quem viveu nos Estados Unidos durante as duas últimas décadas do século passado. Nos anos 1980, o crescimento acelerado do empreendedorismo tecnológico foi acompanhado por uma explosão no consumo de cocaína, apelidada de "a dama branca" pelos futuristas da época. A alta demanda dessa minoria rica e bem nascida serviu de pano de fundo para o surgimento do crack, oferecido a preços bem mais módicos nos guetos de maioria negra do sul de Los Angeles e, então, do resto do mundo.
Aí, para ajudar o resolver o problema, o congresso americano passou um conjunto de leis que criou uma disparidade penal de 100:1 entre traficar cocaína e crack, no país. Um dos resultados óbvios foi o encarceramento massivo de homens negros –vale ler este relatório do Departamento de Justiça americano.
Isso foi em 1986, ano em que Michael Jordan voltou ao time universitário da pequena Chapel Hill (Carolina do Norte), para se recuperar de uma fratura. Na época, eu estudava numa escolinha pública colada ao ginásio em o Pelé do basquete treinava, onde haviam classes só para negros, com horário de recreio separado e tudo mais. Bizarrice pouca é bobagem.
Em "A brief history of racism", um dos mais citados estudos sobre o assunto, Fredrickson assinala que "a discriminação por meio de instituições e indivíduos contra os que são percebidos como racialmente diferentes pode persistir e mesmo se desenvolver sob a ilusão de ausência de racismo" (p.4). Naquela época não era muito assim; seja na atrasada Carolina do Norte, ou em qualquer outra parte.
Tanto foi que, em 3 de março de 1991, a polícia de Los Angeles (conhecida pelos seriados e bonés onde se lê "LAPD") espancou severamente Rodney King, num incidente que produziu danos cerebrais permanentes na vítima e foi parar nas telas do mundo todo, graças a uma filmagem amadora. Rodney King estava em liberdade condicional, após uma condenação por roubo e havia se negado a parar o carro, quando primeiramente solicitado.
Treze dias depois, a estudante Latasha Harlins, de quinze anos, foi assassinada com um tiro na cabeça, pela dona de uma loja de conveniência, anteriormente agredida pela menina com um soco. Desta vez, o incidente foi filmado pelas câmeras de segurança. A assassina confessa pegou cinco anos de liberdade condicional, enquanto os policiais foram inocentados.
Em ambos os casos, as vítimas não foram agredidas aleatoriamente, não é este o ponto, mas a associação entre reação desproporcional e conivência judicial deixou os crentes no "American Way of Life" estarrecidos. Aos amigos tudo, aos inimigos, a lei – como assinalou Maquiavel, 500 anos antes.
Tendo a revolta pela absolvição dos quatro agressores de Rodney King como razão imediata e a combinação de fatores mencionada acima como razão profunda, Los Angeles foi palco de fortes revoltas, no comecinho de maio de 1992. O balanço inclui 55 mortos, mais de 2.000 feridos, além de 12.000 presos e US1 bi em prejuízos.
Pula para 2020. Os protestos causados pelo recente assassinato de George Floyd (Minneapolis, 25 de maio de 2020), os quais vêm incendiando os Estados Unidos e gerando ecos em outros países, possuem fortes semelhanças com as de 1992, bem como os crimes cometidos, marcados pela brutalidade gratuita contra homens negros desarmados, em atitudes não violentas.
A diferença mais explícita, é claro, é o fato de que Floyd morreu, enquanto King viveu para servir de porta-voz da sua história. Outra, é que o policial que sufocou Floyd foi indiciado por homicídio em segundo grau (não premeditado), enquanto os outros foram por crimes relacionados. A pena daquele pode chegar a 40 anos.
Mas, não só. A minha tese é que a situação atual aponta para desfechos categoricamente diversos, que vão ao encontro da transição tecnológica em curso (revolução cognitiva), em consonância com a própria pandemia – para o bem e para o mal, com impacto global. O objetivo deste artigo é explicar isso.
Efeitos das revoltas populares sobre o policiamento revelam porque 1992 não é 2020
Uma coisa fundamental que não mudou em Los Angeles com os protestos de 1992 é a letalidade da polícia, a qual permanece elevada. Outras, porém, mudaram: a taxa de policiais brancos caiu pela metade, bases de dados de comportamentos de risco foram criadas e número de prisões deixou de servir de medida interna de desempenho para promoções e outros usos institucionais. Sim, talvez você não saiba, mas, tal como em uma empresa, as polícias ao redor do mundo têm suas KPIs (indicadores de desempenho) e muito do que acontece nas ruas tem a ver com estas métricas.
Revoltas que sucederam crimes de natureza semelhante em outras cidades (São Francisco, Dallas, Chicago, Baltimore, entre outras) também contribuíam para a elevação do padrão comportamental da polícia, o que por sua vez convergiu para uma melhora em nível nacional, notável a partir de 2013. Porém, tal não é linear e generalizada: ao passo que a polícia das grandes cidades americanas vem matando menos, o contrário vem ocorrendo nas áreas menos populosas.
As consequências da morte de George Floyd e dos protestos que se seguiram parecem que serão muito mais profundas e duradouras. Minha hipótese é que não apenas podem reforçar o alinhamento em relação àquilo que o Departamento de Justiça Americano recomenda e o reconhecimento da humanidade do outro obriga, como devem catalisar mudanças estruturais, intimamente ligadas à tecnologia.
Na segunda-feira (8), Nancy Pelosi, líder da maioria democrata no congresso americano, propôs uma reforma legislativa focada em aspectos-chave do comportamento policial. Se a lei passar, a proteção legal dos policiais envolvidos em interações violentas irá cair significantemente, enquanto o mata leão e outros procedimentos de risco serão proibidos.
A fala da deputada ocorreu após nove dos 13 membros do conselho da cidade de Minneapolis fazerem uma declaração conjunta de que irão encerrar o policiamento na cidade, nos moldes em que ele é praticado hoje em dia. Para mim, o ponto central do pronunciamento proferido pela presidente do conselho, Lisa Bender, o qual acredito que seja muito mais do que uma bravata, é este aqui: "nós vamos adotar passos intermediários em sentido ao encerramento da polícia de Minneapolis através do seu financiamento direto e outras políticas envolvendo seu dinheiro, ao longo dos próximos meses".
Os líderes do conselho da cidade de Seattle, cidade onde os protestos foram intensos e a reação policial particularmente enérgica, ensaiam movimento semelhante. Ali, a líder do comitê de manejo das verbas da polícia local, Teresa Mosqueda, propôs cortar US$ 400 milhões da força, sob a intenção de aniquilar sua estrutura atual.
Esta não é uma pauta inventada pelos políticos, sejamos claros. Ela foi incorporada do movimento Black Lives Matter, que vem batendo na tecla do desmantelo da polícia pela via financeira há tempos. Apesar de sua popularidade crescente, seria exagerado dizer que se tornou ou irá se tornar hegemônica em função dos protestos de maio/junho de 2020, de modo que a "a polícia dos Estados Unidos, como a conhecemos" deixará de existir. Para se ter uma ideia dos percalços deste caminho, basta considerar que tanto Trump, quanto o ex-vice presidente e atual candidato democrata à presidência, Joe Biden, declararam-se contrários à mesma.
Acontece que este não é um jogo de tudo ou nada. A combinação entre menor segurança jurídica, orçamento menor e limitação nos procedimentos e armas disponíveis deve ter efeito paralelo aos seriados de TV que glamourizam a profissão, só que com direção contrária.
Os políticos alinhados com o reforçamento do poder repressivo do Estado, que à princípio perdem com o desprestígio da polícia, verão nisso uma oportunidade única para promover o uso de tecnologias de vigilância e repressão, cuja impessoalidade é mais facilmente manejável do que o comportamento excessivo de policiais sem noção. Nas entrelinhas, seguirá o ainda mais crítico corte de custos com pessoal.
É lógico que estamos há décadas de qualquer discussão relevante sobre a versão não ficcional do Robocop. Mas, efetivamente, o crescimento no uso de câmeras de vigilância com reconhecimento facial e capacidade de mapear perfis ("profiling"), plataformas de inteligência artificial para a interpretação de comportamentos suspeitos, tracking por redes de celulares e mesmo CBDC (moeda digital, a qual é muito mais controlável) tendem a deslocar a questão que hoje se coloca de maneira interpessoal para outra esfera, que ainda nos é muito estranha. Tal como o Tik Tok vem provando, o mundo tende a se tornar cada vez mais chinês.
Para fechar
Uma das consequências dos protestos de 1992 foi o reforçamento do policiamento comunitário, que serviu de contexto para uma das mais eficientes tecnologias para a inibição da violência policial: as câmeras filamdoras atreladas ao corpo do policiais (body cameras). Estas, entretanto, não se tornaram hegemônicas até hoje. Do outro lado da equação, as filmagens de ações policiais se popularizaram e passaram a ser amplamente vistas como arma de defesa pelas minorias dos Estados Unidos e de outros países. O flagra do assassinato de George Floyd não é fenômeno isolado, neste século. Por sinal, diversos vídeos de ações violentas estão sendo escrutinizados e convertidos em provas em processos relativos à repressão aos protestos recentes.
Os excessos policiais recentes tendem a reforçar o uso de tecnologias de monitoramento proximal de comportamentos inapropriados, como câmeras dentro e fora das viaturas americanas, transmitindo as ações policiais por streaming para um servidor seguro, mas podem ir muito além disso. Elas também podem acelerar a substituição de partes do trabalho realizado manualmente por sistemas automatizados com inteligência artificial e dar novo gás ao processo de implantação de moedas digitais no ocidente (novamente, tal como vem ocorrendo na China), as quais permitem controles financeiros direcionados, em contraposição ao controle físico, cujo desprestígio é crescente.
Não é de se esperar um movimento linear, dogmático e em uníssono. Nesta mesma segunda-feira (8), em que Minneapolis e Seattle anunciaram a intenção de desmantelar sua polícia, o executivo-chefe da IBM, Arvind Krishna, declarou que a empresa pretende parar de vender softwares de reconhecimento facial para as forças de segurança; na quarta (10), a Amazon declarou que vai fazer uma moratória de 1 ano, nas vendas para o governo de seu software rekognition, de função análoga. Em outras frentes, a oposição à vigilância digital também é crescente e vem recebendo rápido apoio das marcas e de políticos de diferentes matizes (incluindo congressistas republicanos), que compreendem o quanto o assunto se tornou socialmente relevante, mobilizando compras e votos. Mas é de se considerar o fato de que as coisas tendem a mudar quando deixam os holofotes e que a saída mais fácil para o beco sem saída em que a repressão policial nos Estados Unidos se meteu é esta que estou colocando: o aprofundamento no uso de tecnologias de vigilância e repressão criminal.
A intensidade deste movimento de substituição tecnológica do aparelho repressivo vai ser em grande parte determinada pelas respostas da sociedade civil às diferentes tecnologias (uma coisa que vai contar é o poder de mobilização continuada do Black Lives Matter) e os desfechos das próximas eleições legislativas e federais. De qualquer maneira, uma coisa parece-me certa: as tecnologias que limitam a pessoalidade ganham, enquanto a categoria profissional dos policiais perde. Merecidamente e no melhor interesse da sociedade? Em grande medida, sim. Mas, visto à distância, o movimento que se anuncia não é tão diferente daquele que vem se dando em relação às profissões de A a Z, o qual o coronavírus catalisou.
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